RESENHA:
O
Mistério do Capital, de Hernando De Soto
José Ricardo Cardoso de Mello Junqueira1
[1]1 - INTRODUÇÃO
Recentemente, aconteceu na cidade
do Rio de Janeiro a Primeira Cúpula de Negócios da América Latina, promovida
pelo Fórum Econômico Mundial. Frédéric
Sicre, diretor-gerente da organização, listou entre os maiores problemas do
Brasil a criminalidade, a baixa eficiência das polícias e do Judiciário, a
baixa eficiência no recolhimento de impostos e problemas relacionados com o direito de propriedade (grifo do
autor).
A questão da propriedade entrou na
agenda dos debates sobre os entraves ao desenvolvimento no Brasil. É oportuno,
nesse momento, relembrar os que leram e chamar a atenção dos que não o fizeram
para o livro de Hernando De Soto, intitulado O Mistério do Capital - Por que o
capitalismo dá certo nos países desenvolvidos e fracassa no resto do Mundo[2].
A tese central do livro cita que o processo de representação da riqueza
ou do capital, que o autor chama efeito propriedade, é deficiente ou mesmo
inexistente nas “nações do Terceiro Mundo
e do extinto bloco comunista”, o que faz de boa parte dos seus ativos
capital morto. Lembra que nos países desenvolvidos, “toda parcela de terra, toda construção, todo equipamento ou estoque
é representado em um documento de propriedade, e que este é o sinal visível
de um vasto processo oculto, conectando todos esses ativos ao restante da
economia”. Esse seria o mistério do capital.
O autor destaca que “trata-se de uma infra-estrutura legal implícita,
oculta, bem ao fundo de seus sistemas de propriedade, da qual a posse não é
mais do que a ponta do iceberg. O resto do iceberg é um intrincado processo
construído pelo homem, que pode transformar seus ativos e seu trabalho em
capital”.
Para enriquecer sua tese, o livro trata de cinco
mistérios associados, cada qual correspondente a um capítulo.
1.1 - O Mistério da Informação Ausente
Neste capítulo, De Soto relata a
pesquisa realizada em vários países sobre as dificuldades para legalizar um
terreno ou um pequeno negócio, empurrando milhões de atividades para o setor
informal e evidenciando o quanto os chamados “pobres do mundo” têm poupado na
forma de terrenos, moradias e pequenos negócios, porém, por falta de
legalização, essa poupança é considerada capital morto.
1.2 - O Mistério do Capital
Este capítulo, onde
se desenvolve a tese central (e que será abordado com mais detalhes a
seguir), procura definir o que é capital à luz de pensadores como Marx e Adam
Smith, como é produzido e como se relaciona com o dinheiro.
1.3 - O Mistério da Percepção Política
Em seguida, De Soto faz um extenso
relato histórico do processo de urbanização ocorrido no mundo, do surgimento do
fenômeno setor extralegal, da reação diferenciada das elites políticas em
diferentes países ao fenômeno e da capacidade de alguns em absorver e
incorporar esse novo contingente à vida econômica. Evidencia que o que está
acontecendo nesse momento, na maioria dos países, já aconteceu antes na Europa
e nos Estados Unidos, mas o que aconteceu nas bem-sucedidas nações capitalistas
permaneceu como um mistério.
1.4 - As Lições Esquecidas da História dos EUA
Usando a história norte-americana como exemplo mais pertinente, neste
capítulo o autor relata a longa e extensa batalha política e judicial ocorrida
naquele país para incorporar os setores que foram desbravando o interior.
Inicialmente sem lei e, posteriormente, regido por leis locais, que surgiram
nos usos e costumes das diferentes comunidades. O embate entre a legislação
federal, copiada da legislação britânica, e as legislações locais forjou uma
legislação e um conjunto de instituições que têm permitido integrar a grande
maioria das atividades ao sistema legal formal, de tal modo que tais atividades
possam ser transformadas em capital.
1.5 - O Mistério do Fracasso Legal: por que a lei de
propriedade não funciona fora do Ocidente
Finalmente, De Soto destaca que
não adianta copiar as leis dos países ocidentais e adotá-las
coercitivamente. A história tem mostrado
que é necessário identificar os pactos sociais existentes e aceitos pela grande
maioria da população. Termina sugerindo aos governos que estejam dispostos
a incorporar seis pontos a esse grande contingente de pessoas que operam na
economia informal:
1)
a situação e o
potencial dos pobres precisam ser mais bem documentados;
2)
todas as pessoas
são capazes de poupar;
3)
o que falta aos
pobres são sistemas legalmente integrados de propriedade, que possam converter
seus trabalhos e poupanças em capital;
4)
a desobediência
civil e as máfias de hoje não são fenômenos marginais, e sim resultado da
marcha de bilhões de pessoas, proveniente de uma vida organizada em pequena
escala em direção a outra de grande escala;
5)
nesse contexto,
os pobres não são o problema, e sim a solução;
6)
a implantação de
um sistema de propriedade que gere capital é um desafio político, pois envolve
entrar em contato com as pessoas, compreender o contrato social e rever o
sistema legal.
2 - O MISTÉRIO DO CAPITAL
No capítulo onde trata da tese
central do livro, De Soto começa lembrando que enquanto na maioria dos países casas,
terrenos e mercadorias são apenas casas, terrenos e mercadorias, nos países
onde o capitalismo prosperou, esses mesmos ativos levam uma vida paralela ao
mundo físico, sob a forma de capital.
Em seguida, lembra que muitos confundem
capital com dinheiro guardado e investido. Resgatando Adam Smith e Marx, pontua que o dinheiro é apenas uma das
formas como o capital circula e serve, entre outras coisas, para medir valores.
Mas o real valor das coisas está na sua capacidade de criar uma produção adicional.
Usando uma analogia com um lago, que pode gerar energia
desde que o homem adote alguns procedimentos conhecidos, diz que continua
um mistério o fato de onde encontrar a chave do processo que converte o
potencial econômico de uma casa, por exemplo, em capital. Isso
porque, segundo De Soto, o processo-chave não foi organizado deliberadamente
para criar capital, mas para o propósito mundano de proteger a posse de propriedades.
Enfatiza que é a propriedade
formal que proporciona o processo, as formas e as regras que fixam os ativos em
uma condição que permite convertê-los em capital ativo. Esse processo começa
com o registro de propriedade, descrevendo e organizando os aspectos econômico
e socialmente mais úteis sobre esses ativos. Depois, são convertidos em
títulos, seguindo um conjunto de regras legais e precisas, compartilhando com
os demais essas informações padronizadas e aceitas socialmente.
Em seguida, o autor destaca seis
efeitos desse simples procedimento, que permite ativos transformarem-se em capital. Os chamados efeitos-propriedade seriam:
-
Fixação do potencial econômico dos ativos: o processo tem início na representação escrita das
qualidades econômicas e sociais mais úteis sobre os ativos. A escritura de uma
casa remete ao universo conceitual,
enquanto a casa em si remete ao mundo físico real. O capital reside no mundo
conceitual, representativo, mas lastreado no mundo real. A representação formal
de propriedade permite que esse título tenha uma vida separada do ativo em si. Pode ser utilizado
como garantia em empréstimos; como ação ordinária negociada em bolsa; como
endereço para cobrança de dívidas, impostos e taxas; como localização que
identifica os indivíduos para motivos comerciais, judiciais ou cívicos; ou
como terminal responsável para recebimento de serviços públicos, como energia,
água, esgoto, telefone e TV.
Sendo ou não intencional, o
sistema legal de propriedade transformou-se na escadaria que conduziu as
nações desenvolvidas do universo dos ativos, em seu estado natural, para o
universo conceitual do capital.
-
A integração das informações dispersas em um único
sistema: a integração da maior parte dos
ativos nas nações ocidentais ao sistema formal de propriedade não ocorreu por
acaso. Durante décadas no século XIX, políticos, legisladores e juízes
juntaram fatos e regras dispersas que haviam regido a propriedade por todas as
cidades, vilas, construções e fazendas e os integraram em um sistema único - o
que Hernando De Soto afirma não ter encontrado nos demais países pesquisados.
Nesses países, o que ocorre com freqüência são acordos informais, pelas
dificuldades em ingressar nos sistemas formais descolados dos sistemas formais.
-
A responsabilização das pessoas: a lei formal de propriedade deslocou a legitimidade dos
direitos dos proprietários do contexto local para o mundo impessoal da lei,
favorecendo o estabelecimento de suas responsabilidades, criando indivíduos
onde antes havia massa. O preço a pagar é a perda de autonomia dos proprietários.
As autoridades passam a ser capazes de descobrir infrações legais e contratos
desonestos, podem suspender serviços, reter a propriedade e retirar alguns ou todos
os privilégios de propriedade legal. O papel da propriedade formal passou a ser
não só de garantir a posse de um ativo, mas garantir também as transações associadas
a esse título de propriedade. Assim nasceu o respeito dos cidadãos desses
países em títulos financeiros. Todo compromisso financeiro é mais sólido quando
apoiado por uma promessa de propriedade, seja uma hipoteca, seja um direito de
retenção ou qualquer outra forma de garantia protegendo a outra parte contratante.
-
A transformação dos ativos em bens fungíveis: uma das funções mais importantes do sistema de propriedade formal é transformar a condição
dos ativos de menos a mais acessíveis para que possam fazer trabalho
adicional. Separando as características econômicas de um ativo de seu rígido estado físico, uma representação
torna o ativo fungível - capaz de ser moldado para servir praticamente a
qualquer transação. As representações podem ser combinadas com facilidade,
divididas, mobilizadas e usadas para estimular acordos de negócios. Assim, os
sistemas formais de propriedades ocidentais reduziram significativamente os
custos de transações de mobilização dos ativos.
-
A integração das pessoas: a verdadeira inovação da propriedade foi melhorar
radicalmente o fluxo de comunicação sobre os ativos e seus potenciais, transformando
seus donos em agentes econômicos capazes de transformar ativos dentro de uma
rede ampla. A propriedade legal fornece às empresas informações sobre os ativos
de seus donos, endereços verificáveis e registros objetivos do valor da
propriedade, todos estes conduzindo a registros de crédito. Essa informação e a
existência de uma lei integrada tornam os riscos mais manejáveis,
distribuindo-os a dispositivos, como seguros e junções de propriedade, na
garantia de dívidas. A propriedade formal passa a ser o centro de uma rede
complexa de conexões. As organizações financeiras podem identificar
solicitantes de empréstimos potencialmente confiáveis em escala maciça. Os cidadãos
comuns passam a ter condições de formar vínculos, tanto com o governo como com
o setor privado de forma segura, e assim obter mercadorias e serviços
adicionais. Então, o sistema de propriedade extrai o potencial abstrato das
construções e o fixa em representações que permitem o uso passivo apenas como
abrigo.
-
A proteção das transações: o sistema de propriedade formal ocidental funciona
porque é baseado numa rede de instituições (cartórios públicos, entidades
privadas de registro de transações, organizações guardiãs de depósitos de
garantia, agências de certidões, avaliadores, seguradoras de títulos e
certidões, agências de hipoteca, serviços privados de reconhecimento de firma
e conservação de documentos originais), que devem seguir rígidos padrões de operação
e rastrear permanentemente a viagem desses títulos no tempo e no espaço. Tais
instituições visam proteger a posse e as transações associadas. O trabalho de
De Soto salienta que nas sociedades onde o capitalismo prosperou, essas
instituições enfatizam as transações, enquanto nas demais a ênfase está na
garantia da posse, simplesmente.
Ao final deste capítulo, quando De
Soto estabelece a relação entre capital
e dinheiro, afirma que uma das razões para que as chamadas “reformas macroeconômicas e de ajustes estruturais”,
levadas a cabo em vários países nos últimos anos, não têm funcionado porque
não levam a questão da propriedade formal em consideração. Ele
lembra que precisa-se de capital, e este requer um sistema complexo e poderoso
de propriedade legal.
Capital, que em latim significa
cabeça, é antes de tudo produto da mente humana, que estabelece uma relação simbólica
entre um título, um papel e um bem real e seu potencial econômico. O sistema de
propriedade, então, não seria um mero pedaço de papel, e sim um dispositivo de
mediação que captura e estoca a maior parte do que se precisa para manutenção
do funcionamento de uma economia de mercado. A propriedade semeia o sistema,
tornando as pessoas responsáveis e os ativos fungíveis, acompanhando de perto
as transações e, assim, proporcionando todos os mecanismos necessários ao funcionamento
dos sistemas monetário, bancário e de investimento. A ligação entre capital e
dinheiro moderno passa pela propriedade.
Radicalizando seu argumento, De
Soto afirma que é a informação documentada encontrada em registros legais de
posse e de transações que fornece às autoridades monetárias os indicadores de
que precisam para emitir moeda corrente. Citando George A. Miller e Philip N.
Jonhson-Laird, enfatiza que “a cédula de
papel deve sua origem à anotação de dívidas. [Portanto], o dinheiro (...) pressupõe a instituição da propriedade.” É a
documentação de propriedade que fixa as características econômicas dos ativos
para que possam ser usados na garantia de transações comerciais e financeiras
e, por fim, proporcionar a base justificativa para os bancos centrais emitirem
dinheiro.
O capital não é, portanto, criado pelo dinheiro; é criado por pessoas
cujos sistemas de propriedade auxiliam-nas a cooperar e pensar como podem fazer os ativos que acumulam desdobrarem-se
em produção adicional. Esse seria o
mistério do capital, que permitiu aos países onde a economia de mercado
prosperou produzirem dinheiro não-inflacionário com o qual financiam e geram
produção adicional.
3 -
CONSEQÜÊNCIAS IMEDIATAS PARA O AGRONEGÓCIO: capital e dinheiro no Brasil
Essa é, sem dúvida, uma das principais
reformas necessárias no Brasil, e até o momento sequer tinha entrado na agenda
nacional. Muito se fala sobre criar condições para que se desenvolvam
mecanismos de financiamento de longo prazo, valorizando a poupança interna. Com
certeza, o País é quase que totalmente dependente de capital externo para
financiar o desenvolvimento. Tal condição tem provocado constrangimentos
fortes para o crescimento sustentado do Brasil.
De fato, como ressalta De Soto, no
Brasil, como nos demais países, o crédito ao setor produtivo é um dos elementos
que o Banco Central (BC) leva em consideração para justificar a emissão de
dinheiro sadio, sem efeito inflacionário. Desde 2000 os créditos são
classificados segundo seu grau de risco. Quanto menor for o risco, menor será a
exigência que o BC faz para os bancos reterem recursos e, portanto, maior será
a disponibilidade de dinheiro para novos financiamentos.
Dadas as fragilidades macroeconômicas,
o País tem uma das maiores taxa de juros do mundo. Para agravar essa situação,
o spread bancário praticado no Brasil
é exorbitante. Grande parte desse spread
é explicado pelo risco de crédito elevado, em função da fragilidade das garantias
apresentadas.
Todos esses argumentos são a favor
da tese de Hernando De Soto.
O impacto social e econômico de medidas
que equacionasse esse problema seria muito grande. O novo Governo parece estar
sensibilizado para o problema, à medida que o Ministro da Justiça tem colocado
como uma das suas prioridades a regularização da propriedade nas zonas de
favela, exatamente para facilitar a inserção do contingente populacional que
vive em condições precárias no mercado de bens e serviços públicos e
privados.
No entanto, esse problema no Brasil é generalizado e
não se aplica apenas às regiões de favela. Os empresários brasileiros têm sido
acusados de patrimonialistas, e de fato o são. Um dos motivos, com certeza, é a
falta de confiança
em títulos que representem
riqueza no Brasil; problema que no momento tem preocupado também as economias
centrais, especialmente as do Japão e dos EUA.
Essa questão afeta principalmente as atividades que exigem crédito de
longo prazo. A construção civil e o agronegócio estão entre eles. São setores
que ficam na dependência quase exclusiva de linhas de financiamento oficial e,
por isso, desperdiçam um potencial produtivo, gerador de emprego e renda brutal.
Os bancos estrangeiros, que se
instalaram no Brasil com a abertura do País na década de 90, tinham a intenção de ocupar esse espaço,
especialmente na área da construção civil. Depois de analisar as condições do
sistema de propriedade existentes, acabaram se comportando como os bancos
tradicionais, e não se aventuraram por esse caminho.
No caso do agronegócio, a política agrícola é baseada
essencialmente no financiamento de investimentos e na política de estoques
reguladores. Ambas as atividades dependem da confiança em títulos que
representem riqueza. As linhas de crédito baseadas em recursos oficiais (BNDES
e BB) amenizam o problema, mas estão longe de alavancar o potencial produtivo
do agronegócio no Brasil.
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