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couTinho : 313
HERNANDO DE SOTO E A SUA TENTATIVA DE
SOLUCIONAR O MISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO
Laura Coutinho
Hernando de
Soto and HiS attempt to Solve tHe miStery of development
RESENHA
DE SOTO,
HERNANDO. The oTher paTh. NOVA YORK: HARPER
& ROW
PUBLISHERS, 1989.
______. The
mysTery of capiTal.
NOVA YORK: BASIC
BOOKS, 2000.
papel das instituições no desempenho da economia tem
sido objeto de
um intenso
debate, que vem se desenrolando nas últimas décadas. Não que
o tema seja novo, já que a maior parte dos autores identifica a obra de Max
Weber como a matriz teórica das teorias instituciona- listas atuais.1
A partir da
década de
1960, no entanto, em decorrência, em grande medida, das
ideias e experiências de economistas como Ronald Coase e Douglass North, esse
debate tomou um novo fôlego e ganhou lugar de destaque na agenda
internacional. Como avalia
Trubek,2 a importância que hoje se dá ao Direito é resultado
da “descoberta”, pelos economistas, da relevância e da influência da estrutura
institucional na economia. A par
tir daí,
organismos internacionais de combate à pobreza passam a estimular e,
muitas vezes, a condicionar sua ajuda à adoção de medi- das de reengenharia
institucional.
A obra do economista Hernando De Soto, objeto de minha
análise neste texto, insere-se, portanto, em um con- texto muito mais amplo de
estudos acadêmicos e empíricos sobre a função das instituições,3 muito
embora sua
maior contribuição se dê em uma área bastante particular, ou
seja, nas discussões sobre as razões pelas quais programas de regularização
fundiária devem ser adota- dos como medidas de promoção ao desenvolvimento.
De Soto é autor de dois livros dedica- dos à compreensão do
subdesenvolvimen- to e à elaboração de propostas para seu combate. No primeiro
deles, The Other Path, De Soto relata a experiência que ele e um grupo de
economistas realizaram em Lima, no Peru, a fim de explicar por que tantos
empreendedores se mantêm na informalidade e o quanto se perde com isso. No
segundo, The mistery of capital, De Soto
busca explicar por que as tentativas de fomento ao desenvolvimento costu- mam
fracassar e, na sequência, oferece sua alternativa às políticas comuns.
Em regra, tanto as análises quanto as críticas ao pensamento
de De Soto con- centram-se no seu segundo livro. Isso se dá, em parte, porque
The mystery of capital é o seu livro de maior sucesso, mas tam- bém, e
principalmente, porque é nele que De Soto detalha seu plano de comba- te o
subdesenvolvimento e dá a sua contribuição original a este debate, ao afirmar
que tais iniciativas só serão bem- sucedidas se forem capazes de reconhecer os
arranjos informais que dominam, segundo ele, grande parte das economias dos
países subdesenvolvidos.
Ocorre que a maior parte das ideias desenvolvidas em The
mistery of the capital são fruto ou elaborações feitas a partir das
experiências relatadas em The other path. Por esta razão, optei por analisar as
duas obras em conjunto. A meu ver, a
adoção desta metodologia traz inúmeros ganhos, pois não só
permite a melhor compreensão do pensamento de De Soto, como o torna mais
coerente. De fato, as ideias expostas por De Soto em The mistery of capital só
fazem sentido se partirmos do pressuposto de que não só há uma enorme economia
informal, mas que a informalidade é fruto da ineficiên- cia das instituições,
como ele afirma em The other path. O foco desta resenha esta- rá, portanto, em
um primeiro momento, nas observações que De Soto faz, em The Other Path, sobre
as complexas relações econômicas e sociais existentes dentro da economia
informal, para depois se con- centrar nas soluções por ele propostas em The
mistery of capital.
1 O DIAGNÓSTICO
A originalidade do pensamento de De
Soto está na forma como ele conecta o fracasso da lei e das
instituições jurídicas ao fracasso econômico. Em linhas muito simples, o que
afirma De Soto (2000, p.
16) é que países pobres são pobres por- que não conseguem enxergar
sua própria riqueza, já que, segundo as esti- mativas do autor, 80% de sua
população vive à margem da economia formal e longe, consequentemente, das
estatísti- cas oficiais. Todo seu exercício visa demonstrar, portanto, que o
combate ao subdesenvolvimento deve passar, neces- sariamente, por uma mudança
na forma como esses países lidam institucional- mente com sua população mais
pobre.
O ponto de partida de De Soto é o seu inconformismo com as
justificativas
usuais dadas para explicar o subdesen- volvimento. Segundo
ele, todas elas partem de ideias preconceituosas, como a de que a cultura
latino-americana não privilegia o espírito empreendedor ou de que a herança
colonial ainda é dema- siadamente for
te, impedindo o crescimento econômico. Mais do que tudo,
no entanto, De Soto (1989, p. xxiii) desconfia da noção dominante de que haja
uma imensa massa de pessoas vivendo na mais absoluta miséria. Para ele, a
informalidade não é sinônimo, necessariamente, de pobreza. O autor afirma que há
uma similitude entre a situação atual enfrentada pelos países subdesenvolvidos
e aquela enfrentada pelos países europeus e pelos Estados Unidos no passado (DE
SOTO, 2000, p.
105-107). Em todos os casos, continua ele, houve uma
resistência da população urbana em receber os migrantes, a qual se traduziu no
estabelecimento de uma série de empecilhos à fixação desses na cidade, que vão
da adoção de políticas explícitas de proibição da migração à criação de uma
enorme burocracia para o estabelecimento de tais indivíduos. O resultado é,
porém, sempre um: essa população é condenada a viver na ilegali- dade. Isso não
significa, no entanto, que ela não esteja economicamente ativa.
Para comprovar suas suspeitas, De Soto (1989, p. 133)
imaginou um expe- rimento razoavelmente simples: verificar quais são os
procedimentos necessários para que um pequeno empreendedor regularize seu
negócio perante as auto- ridades peruanas. Com este fim, um grupo de
economistas do Instituto para
Liberdade e Democracia,
o qual De Soto preside, fez alguns estudos de casos
e até tentou, de fato, iniciar uma peque- na confecção.
Os resultados foram espantosos, mas não surpreendentes, e
confirmaram ao menos parte das ideias de De Soto. Para iniciar a pequena
confecção, os economis- tas gastaram 289 dias e US$ 149,00 em taxas (DE SOTO,
1989, p. 134). Se consi- derarmos o período em que não se produ- ziu, foram
consumidos US$ 1.231,00 na regularização do empreendimento. As demais
experiências revelaram resulta- dos parecidos, mas outra questão sur- giu: se
seria, realmente, como também acredita o senso comum, mais vantajoso para esta
parte da população permane- cer na ilegalidade.
De Soto tenta, então, compreender quais são as perdas que um
empreende- dor informal enfrenta por não poder contar com a proteção da lei. De
acordo com o autor, para evitar ser detectado, um empreendedor informal precisa
man- ter seu negócio em pequena escala. Ele não pode fazer propaganda e
ocasional- mente é obrigado a pagar propinas a agentes públicos, a fim de não
sofrer san- ções legais. Por outro lado, ele não vive completamente fora do
sistema tributá- rio, já que há uma série de tributos indiretos que ele também
deve suportar, embora não possa contar com vários dos benefícios que o Estado
proporciona. Por fim, a desobediência de regras trabalhis- tas, que poderia se
traduzir em aparente vantagem, resulta também em perdas, uma vez que o informal
só consegue con- tratar mão de obra pouco qualificada.
Além desses custos, que De Soto identifica como custos para
se manter na informalidade, há aqueles que o infor- mal deve suportar por não
poder contar com a proteção legal. A lei tem tríplice função quando se pensa em
um empreendimento econômico. Ela prote- ge a propriedade, cria mecanismos de
enforcement de contratos e um sistema de responsabilização civil. Ao ficar
“fora da lei”, o informal não pode se valer de nenhuma destas vantagens. Não
possuin- do títulos de propriedade, ele não pode utilizar seu imóvel para obter
crédito. Há, ainda, um efeito secundário. A inse- gurança da posse faz que os
informais não invistam nos imóveis nem se sintam estimulados a poupar para
neles introdu- zir melhorias (DE SOTO, 1989, p. 158).
Sem contar com o Estado para fazer valer o contratado, os
informais preferem realizar negócios somente com aqueles com que mantêm
relações diretas, o que reduz drasticamente as suas possibilidades de
contratação. Além disso, os informais não podem fazer seguros ou se valer de
outros instrumentos facilitadores do comércio, como venda de ações ou títulos
de crédito. Finalmente, a impossibilidade de se utilizarem regras de
responsabiliza- ção civil cria temores entre os empresários, o que sempre se
traduz na redução de investimentos.
Isso não significa, como observa De Soto, que os informais
consigam sobre- viver sem alguns destes instrumentos. Em regra, De Soto relata
que eles desen- volvem sistemas paralelos, adaptando regras dos sistemas
oficiais de acordo com as suas necessidades. Pendências são
resolvidas por “tribunais” informais, apli- cando-se regas
costumeiras. Criam-se milícias responsáveis por fazer valer a lei e aplicar
penas e repartições de registro que fornecerão as informações necessá- rias nos
casos de disputa por terra.
A descrição fornecida por De Soto é bastante condizente com
o que qualquer um pode observar em centros urbanos como Rio de Janeiro e São
Paulo. É muito difícil negar que exista grande ati- vidade econômica fora do
mundo oficial. De acordo com dados do IBGE, há no Brasil 10.335.962 empresas
infor- mais, que empregam 13.860.868 trabalhadores; 94% destas empresas não
utilizaram sistema de crédito no perío- do de três meses imediatamente anterior
à pesquisa.4 A substituição do Estado por outras organizações, muitas vezes
criminosas, também parece inquestionável. O problema está no passo seguinte que
De Soto dá, ou seja, na solução proposta ao problema.
2 O REMÉDIO
Para podermos enfrentar a informalida-
de, alega De Soto (2000, p. 108-135), devemos olhar o
passado. Como já dito, segundo ele, a situação enfrentada pelos países
latino-americanos e por outras nações subdesenvolvidas na atualidade é
semelhante à que a Europa e os Estados Unidos já enfrentaram. A onda migrató-
ria que leva hoje a população a procurar os grandes centros urbanos do Terceiro
Mundo é igual à onda migratória que se seguiu à Revolução Industrial ou à que
se deu nos Estados
Unidos durante sua
colonização. Além da hostilidade dos antigos habitantes,
essa população é obri- gada a lidar com o fato de que as cidades e as
instituições existentes não foram pensadas para lidar com a necessidade de uma
massa tão grande de pessoas.
De Soto conclui, assim, que o subde- senvolvimento deve ser
combatido pela reforma institucional, mas que o mode- lo inspirador da maioria
das primeiras iniciativas com este fim era equivocado, já que calcado no modelo
vigente, e não no modelo adotado pelos países subdesenvolvidos no momento em
que enfrentaram os mesmos problemas que enfrentam os
países subdesenvolvidos na
atualidade.
A partir de uma análise sobre a evo- lução da legislação
sobre terras nos Estados Unidos, De Soto desenha uma possível saída para os
países pobres: o sis- tema oficial deve incorporar os costumes e as práticas
vigentes. Esta solução pare- ce ser do mais absoluto bom senso: se a lei não
consegue atender às necessidades dos cidadãos dos quais regula a vida, ela deve
se adaptar – e não aqueles. O pro- blema das iniciativas desenvolvimentistas
que visavam à reforma institucional foi o de ignorar a realidade de cada um dos
países, buscando impingir, como adverte Trubek, um modelo-padrão a uma cente-
na de países diferentes.
De Soto não enfrenta, no entanto, a questão do quanto se pode
ceder nesta institucionalização dos costumes, a não ser por uma simples
ressalva de que devemos copiar os acertos e evitar os erros cometidos neste
processo, pelas nações hoje desenvolvidas. Nos Estados
Unidos, por exemplo, a Lei de Terras ignorou os flagrantes
desrespeitos às divisas originais das reservas florestais e indígenas e
legalizou a propriedade par- ticular sobre áreas originalmente destinadas
àquele fim. De Soto minimiza ou ignora o dilema que uma opção tal deveria
enfrentar. Ainda que a concessão de títulos e a regularização da posse sejam
capazes de trazer crescimento econômico, será que elas, de fato, pode- rão se
traduzir em efetivos ganhos sociais? Amartya Sen, que também crê na relevância
das instituições para o sucesso econômico, nega este caráter estritamente
instrumental da reforma institucional e afirma que o crescimento econômico,
isto é, a melhora da econo- mia, não pode se dar com prejuízo do bem-estar da
população; mas sobre isso De Soto nada fala.
De Soto também não distingue sim- ples complicações
burocráticas, que estão, de fato, por trás de muitas leis, de reais
preocupações que orientam a ela- boração de um ordenamento jurídico. No caso
específico da ocupação do solo, que é objeto central das análises de De Soto,
isso é ainda mais evidente. Restri- ções urbanísticas, critérios rigorosos para
o loteamento de áreas, proibição de utilização de áreas ribeirinhas ou de
encostas não decorrem da insensibilida- de do Estado em relação aos problemas
de seus cidadãos. Pelo contrário, essas ações quase sempre visam garantir a
qualidade de vida dos seus habitantes. Abrir mão delas sob o pretexto de
garantir o crescimento econômico pode não ser a opção que melhor atenda à
população, especialmente em longo prazo. Se a observação da
experiência americana demonstra que o seu sucesso econômico passou, em um
determinado momento, pela simples consolidação e aceitação, pelo poder estatal,
dos costu- mes, ela pode
ser vir também para demonstrar que certos erros são irreme-
diáveis e que seu preço deverá ser pago em algum momento. Nesse sentido, pen-
sando-se em termos culturais e ambientais e ficando só no exemplo do próprio De
Soto, não se podem ignorar as graves consequências da ocupação desordenada do
solo nos Estados Unidos, que levou à morte grande parte da popu- lação nativa e
dizimou áreas verdes. A questão a qual De Soto não responde é se os então
governantes americanos teriam escolhido regularizar tal situação se eles
tivessem o conhecimento que hoje temos dos reais efeitos de
sua opção.
De Soto minimiza, igualmente, as advertências que teóricos
do Direito e Desenvolvimento fazem sobre a possibi- lidade de se transportarem
instituições de um país a outro, sejam elas antigas, sejam elas contemporâneas.
Em síntese, apesar de sua inegável contribuição à
compreensão da intricada relação entre lei e pobreza e, mais do que tudo, por
sua tentativa honesta de olhar essa relação pelo ângulo daqueles que sofrem as
consequências da lei, e não pelo ângulo daqueles que a criam, Her- nando De Soto
não conseguiu superar a questão central que o Estado moderno enfrenta, que é a
de conciliar crescimen- to econômico, desenvolvimento social e preocupações
ambientais.
NOTAS
1 David Trubek (RODRIGUEZ, 2009, pp. 1-
50), no ar tigo Max Weber sobre o direito
e a ascensão do capitalismo, demonstra a relação direta entre a obra
do sociólogo e
as teor ias institucionalistas e desenvolvimentistas atuais.
2 Entrevista concedida
à Revista DiReiTO
GV
(RODRIGUEZ, 2007).
3 Ainda de acordo
com Trubek, basta uma rápida obser vação no site do Banco Mundial para se
perceber a magnitude e impor tância
dada às instituições
nas políticas econômicas.
4 Ver Boletim
Comunicação Social de 19.05.2005, do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). Disponível em: <www.ibge.gov.br/home/presidencia/
noticias/ noticia_impressao.php?id_noticia=366>.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DE SOTO, Hernando. The other path. Nova York: Harper & Row Publishers, 1989.
______. The
mistery of capital. Nova York: Basic
Books, 2000.
RODRIGUEZ, José Rodrigo (Org.). O novo direito e
desenvolvimento: presente, passado e futuro. Textos
selecionados de David M. Trubek. São Paulo: Saraiva, 2009.
______ (coord.). O novo direito e desenvolvimento.
Entrevista com David Trubek. Revista DiReiTO GV. São Paulo: DIREITO GV, v. 3,
n. 2, jul-dez 2007, pp. 305-330.
Rua Goitacaz, 71, ap. 21
Santa Cecília -
01232-030
São Paulo - SP -
Brasil
lauracoutinho@yahoo.com.br
Laura Coutinho
MESTRANDA EM DIREITO E DESENVOLVIMENTO NA DIREITO GV
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