18/12/2011 - 07:01 http://veja.abril.com.br/tag/gustavo-ioschpe
Gustavo Ioschpe
O sistema educacional que fez da China uma potência
A íntegra do artigo publicado por VEJA, que analisa em cinco capítulos as razões do sucesso chinês na educação
O mérito é o que conta
A China testa com rigor seus estudantes e premia com alvoroço os melhores
(Montagem sobre fotos de Eyepress/AP, Stockphoto)
Capítulo 1 – Os Alunos e seus Pais
Encontrei Sun Juntao, 16 anos, às 7:30 da manhã perto do ponto de
ônibus onde desembarcava, em uma das tantas largas e movimentadas
avenidas de Xangai, a maior metrópole chinesa. Estava a caminho de sua
primeira aula do dia, de Matemática. À primeira vista, Juntao (na China o
prenome vem depois do sobrenome) se parece com um adolescente qualquer:
paramentado com as roupas de marcas esportivas compartilhadas por seus
contemporâneos do mundo todo, ostentando um ralo bigodinho do qual
provavelmente se arrependerá no futuro e falando com aquela mistura de
entusiasmo, ingenuidade, determinação e timidez que são próprios da
adolescência. Mas dois fatores faziam aquela jornada excepcional, pelo
menos para um interlocutor brasileiro.
O primeiro era que acontecia em um domingo. Juntao não estava indo para
sua escola, mas sim para uma aula de reforço, ministrada aos
fins-de-semana por uma escola particular improvisada que fora
estabelecida em um andar do que parecia ser um prédio de escritórios
vizinho a uma antiga fábrica desativada. Na recepção, o logotipo da
escola mal cobria as marcas de cola da placa do locatário anterior:
quando um país está crescendo a 10% ao ano, os sinais da pressa estão
por toda a parte. A despeito das instalações modestas e apressadas, as
pequenas salas, de menos de trinta metros quadrados, estavam lotadas.
Vinte alunos divididos em duas fileiras de mesas retangulares, divididas
por um corredor, com três alunos por mesa em quase todas as fileiras. A
sala não tinha ar condicionado, TV, microfone ou qualquer aparato
tecnológico: só mesas, cadeiras e uma lousa. A aula era ministrada por
um professor jovem, de 27 anos.
Sun Juntao: “Se estudar muito, eu posso vir a ser um dos melhores advogados do mundo”
Foi uma das aulas mais pesadas que já assisti: sem fazer nenhuma
concessão ao fato de estarmos em um domingo de manhã, depois de todos
aqueles alunos passarem uma semana já extenuante em suas escolas
regulares, o professor resolveu problemas de geometria quase que
ininterruptamente, por duas horas, sem intervalo, sem fazer muitas
perguntas aos alunos ou muito menos esboçar qualquer existência do senso
de humor ou do “showmanship” demonstrados pelos professores de
cursinhos brasileiros. Ao final da aula, confesso que minhas nádegas
doíam e já era difícil ficar sentado parado, mas o desconforto
aparentemente não era compartilhado pelos alunos: ninguém reclamou, nem
se mexeu muito, nem saiu pra ir ao banheiro. Durante aquelas duas horas,
o professor colocava o problema no quadro e o resolvia, de vez em
quando dando algum tempo aos alunos para que o resolvessem sozinhos. Ao
final, prescreveu mais exercícios de dever de casa. Depois dessa aula,
um intervalo de dez minutos e mais duas horas de aula de química. Assim
são todos os fins-de-semana de Juntao: das oito ao meio-dia ele vem pra
essa escola de reforço e fica estudando quatro horas de Matemática e
Química. Sem piadas, sem teatro, sem musiquinha pra ajudar a decorar.
Trabalho, trabalho e mais trabalho.
No futuro distante, o desejo de Juntao é ser advogado. Não qualquer
advogado: um dos advogados mais famosos do mundo. Depois de se formar na
China, pretende fazer um mestrado em Stanford, para então voltar ao
país de origem. Mas para alcançar esse sonho do longo prazo, ele precisa
cumprir uma meta mais próxima: ter um bom resultado no gao kao, o exame
nacional de admissão universitária. Apesar de só ter de fazer o teste
ano que vem, Juntao já está se preparando. Em 2012, ele terá de aumentar
sua carga de aulas de reforço, passando a estudar inglês também, aos
sábados. A nota no gao kao determina a universidade na qual o aluno
poderá se matricular.
O segundo fato excepcional neste quadro é que, na verdade, ele não tem
nada de excepcional. Não apenas na província de Xangai mas em toda a
China, milhões de crianças e jovens passarão seus fins-de-semana
freqüentando escolas como essas. Conversei com algumas crianças de dez
anos durante minha viagem à China, e mesmo nessa idade elas também já
estavam fazendo aulas de reforço. Para a grande maioria delas, essas
aulas vêm depois de semanas já muito puxadas. A rotina de Juntao é
parecida com as de muitos dos jovens que entrevistei. Ele acorda
diariamente às seis da manhã. Enfrenta um trajeto de quase uma hora de
ônibus pra chegar a sua escola. Entre às 7:10 e 8:00, lê com seus
colegas livros didáticos da matéria que está estudando, em sala de aula,
sem professor. Às oito começam as aulas. Perto do meio-dia há uma pausa
de uma hora e quinze minutos para o almoço, servido no refeitório da
escola. À tarde, mais quatro períodos de aula. Às cinco da tarde ele vai
pra casa. Chega por volta das 18:30. Durante uma hora, descansa, toma
banho e janta. Aí faz o dever de casa por, normalmente, três horas
diárias. Às 22:30 vai dormir, e o ciclo recomeça no dia seguinte.
Descanso, só aos sábados, e só por mais alguns meses. Como praticamente
todos os jovens que encontrei, exceção feita àqueles da cidade de
Shenzhen. Juntao não tem nem nunca teve namorada, não vai nem nunca foi
para a balada, nunca consumiu drogas ou fumou. Apesar do embaraço
causado à minha tradutora, que só fez a pergunta depois da minha
insistência, quando perguntei a ele o que aconteceria se ele,
involuntária e inadvertidamente, se apaixonasse por alguém nessa idade, a
resposta veio rápida: “Espero até depois do gao kao”.
Essa obsessão dos chineses pelo estudo é o primeiro passo para se
entender a notícia, divulgada no fim do ano passado, que abalou
profundamente toda a compreensão da educação no mundo: de que Xangai,
província chinesa, tinha tirado primeiro lugar em todas as áreas
auferidas (Matemática, Ciências e Leitura) no mais importante e
respeitado teste internacional de qualidade educacional, chamado PISA. O
teste, realizado a cada três anos pela OCDE (o clube dos países
desenvolvidos), mede o conhecimento de jovens de 15 anos de idade.
Começou a ser realizado no ano 2000 com 32 países (dentre eles o Brasil,
que ficou em último lugar ) e, na edição de 2009, contou com 65
participantes (dentre eles, ficamos novamente na rabeira: entre a 53ª e a
57ª posição) . Em suas edições anteriores, o topo do ranking era
ocupado pelos suspeitos de sempre: Finlândia, Coréia do Sul, Japão,
Canadá etc. O teste confirmava a crença de que renda e qualidade
educacional estão intimamente associados: só os países mais ricos do
mundo conseguiriam produzir sistemas top de educação. Mesmo no teste de
2009, países de nível de desenvolvimento semelhante ao chinês ficaram
muito atrás dos países ricos: na área de leitura, o foco da edição de
2009, a Turquia ficou em 41º lugar, a Rússia em 43º, o México em 48º e o
Brasil em 53º. Não é que Xangai se saiu bem, acima do esperado por seu
nível de renda. A região ficou em primeiro lugar, com uma dianteira
considerável de todos os países desenvolvidos, em todas as áreas
medidas.
É verdade que Xangai é uma província e não um país, como a maioria dos
outros participantes do teste. Também é verdade que Xangai não é
representativo da China como um todo: é sua província mais rica (com
renda igual a duas vezes e meia a média chinesa) e também, me
confidenciaram à boca pequena alguns oficiais com quem conversei no
país, aquela que tem o melhor sistema educacional do país, ainda que
ninguém diga por que margem. Mesmo feitas essas ressalvas, o feito é
incrível. A renda per capita de Xangai em 2010 foi de onze mil dólares .
A Coréia, segundo lugar em leitura, tem renda de quase 21 mil. A
Finlândia, terceiro lugar, 44 mil, quase a mesma de Cingapura, quinto
lugar. Mais deprimente para nós: a renda média de Xangai é igual à
brasileira . E ainda que Xangai seja um pequeno pedaço da China, não
estamos falando de uma cidade-estado: a província tem uma área de 6.300
km2 (sete vezes menor que o estado do Rio ), com uma população de 19,2
milhões de pessoas – mais do que 42 dos 65 participantes do PISA. No
ensino básico, é uma rede de mais de 1.500 escolas e mais de 1,3 milhão
de alunos . E é uma zona bastante complexa: 11% de seus habitantes vivem
na zona rural , e 54% dos alunos das primeiras cinco séries são filhos
de migrantes , residentes que vêm de outras províncias para trabalhar em
Xangai.
O governo de Xangai, e da China em geral, só consegue obter esse nível
de devoção à educação em um sistema tão grande e complexo porque o
apreço quase obsessivo pelo ensino é um valor compartilhado pela
sociedade chinesa. Não é preciso ter um “Big Brother” forçando os alunos
a entrarem na linha: os exemplos, e o apoio, vêm de suas próprias
casas. A de Juntao é um bom exemplo. Seus pais são humildes. A mãe
trabalha em um escritório de contabilidade e o pai é assistente de
logística em uma fábrica. Estudaram até o fim do ensino médio. Seus avós
maternos são agricultores, os paternos operários – todos chegaram
apenas até o fim do ensino fundamental. Os avós tiveram de interromper
seus estudos por conta da Revolução Cultural. Os pais não conseguiram ir
para a universidade porque não tiraram nota suficientemente alta no gao
kao. Juntao, filho único, mora com os pais em uma quitinete de não mais
de quarenta metros quadrados. Mas quem dorme no sofá-cama que fica no
cômodo que faz as vezes de sala e cozinha são seus pais. O rapaz tem um
quarto só para si, para que possa se concentrar nos estudos. Apesar da
renda módica dos pais, eles é que pagam as escolas de reforço do filho, e
também seus estudos (na China, só os níveis compulsórios de ensino – do
primeiro ao nono ano – são gratuitos. Os três anos de ensino médio são
pagos, mesmo nas escolas públicas. E mesmo nos níveis gratuitos os pais
devem pagar uniforme, transporte e alimentação. O estado dá apenas os
livros). Juntao é um bom aluno – média em torno de 7,5 – mas sua mãe
sempre diz que ele deveria tirar notas melhores. Mesmo quando tira um 9
ou 10, ela diz “que bom, mas precisa manter esse mesmo nível”. Seus
avós, já falecidos, costumavam lhe dizer: “Quando nós éramos jovens, não
tivemos oportunidade de estudar. Você, que tem ambiente tão bom,
precisa aproveitar e estudar muito.” Certa vez, quando tinha cerca de
oito anos, apanhou da mãe por ter tirado uma nota 3. Juntao me diz ter
99% de confiança de que entrará na universidade, sendo o primeiro de sua
família a chegar a esse nível. Não é pequena a pressão sobre seus
ombros, mas ele sabe que também não é pequena a dedicação de seus pais e
avós para que ele hoje tenha condições de chegar lá.
O esforço feito pelas famílias chinesas para dar uma educação de
qualidade aos filhos é comovente. Tanto em termos de tempo quanto de
dinheiro. Liang Hai, um motorista de Pequim, me disse gastar de 60% a
65% de sua renda com a educação de sua filha, Xiaohan, também de 16
anos, que tem rotina muito parecida à de Juntao: escola em tempo
integral e aulas de reforço aos fins-de-semana. Apesar de dirigir todos
os dias no caótico trânsito de Pequim, Hai leva e busca a filha na
escola de fim-de-semana. Ele está se preparando para gastar ainda mais
ano que vem: no ano anterior ao gao kao, imagina que vá gastar até 80%
de sua renda com a educação da filha, com mais aulas e tutores. Não é
que ele faça isso com prazer: reclamou do tempo e dinheiro envolvidos no
processo. Mas sabe que não tem escolha. Todos os outros pais fazem o
mesmo, e a competição por vagas nas melhores escolas e universidades é
feroz.
O médico Xu Junmin (à esquerda) e seu filho Xu Huaze: entre as qualidades de um bom pai não está a de fazer o filho feliz
A situação não é diferente quando falei com pessoas de nível social e
educacional mais elevado. Depois de deixar a escola de Juntao no
domingo, fui à casa de um médico chamado Xu Jun Min. O doutor Xu
complementa sua renda sendo proprietário de uma empresa de equipamento
médico, o que o deixa em uma situação confortável, ainda que não
opulenta. Seu apartamento de dois quartos deve ter uns 150 m2 e conta
com TV de plasma grande, ar condicionado etc. A situação confortável,
porém, não mascara alguns traços mais esperados em uma família de
camponeses: é preciso tirar os sapatos antes de entrar no apartamento, e
na sala de jantar um mapa da China colado com durex na parede faz as
vezes de obra de arte.
Em duas horas de conversa franca, o Dr. Xu me contou de sua própria
educação. O esforço requerido para uma pessoa nascida em 1958 (véspera
do Grande Salto à Frente) chegar à universidade foi hercúleo. Nasceu e
cresceu em um vilarejo na província de Jiangsu, ao norte de Xangai. A
maioria de seus cinco irmãos não pôde ir à escola. A família era muito
pobre, e foram freqüentes os períodos em que sua única refeição – no
café, almoço e jantar – era o kanji, uma mistura de arroz e água. Depois
de ir à escola, ele precisava ajudar na colheita do arroz, já que o
dinheiro dos pais não era suficiente para bancar sua educação. Até os
dezesseis anos, Xu nunca calçou um par de sapatos. Caminhava diariamente
cinco quilômetros até sua escola e trabalhava nos campos de arroz de pé
descalço. Com dezoito anos se alistou no exército, a única forma de
sair do vilarejo (o governo chinês sempre controlou a migração de
pessoas, especialmente restringindo o fluxo do campo para as cidades.
Até hoje esse controle existe, e os migrantes precisam obter uma
autorização de residência do governo local para não serem clandestinos.
Hoje esse controle é menos severo, mas na década de 70 ainda era
extremamente rígido). Depois de muitas batalhas, conseguiu entrar na
Escola Militar de Medicina e se formar. Como a maioria dos pais de todos
os lugares do mundo, Xu diz que poder dar ao seu filho uma vida melhor
do que a sua é o seu grande sonho. Ao contrário de muitos outros pais de
outros países com histórias mais tranqüilas, porém, o nível de dureza
vivenciado por ele faz com que seu nível de exigência em relação ao
filho seja mais alto, e a inclinação à complacência seja bem mais baixa.
Seu filho, Huaze, é um dos melhores alunos de uma das boas escolas de
Xangai, onde vive em regime de internato de segunda a sexta-feira. O
fato de morar na escola significa que, além da rotina normal de estudos,
precisa voltar para sua sala de aula das 18:30 às 21:15 todos os dias
para estudar e fazer deveres de casa, e às 22h todos devem ir dormir. O
trabalho é ainda mais árduo e a liberdade, ainda menor. Ao saber dessa
rotina e antes de conhecer seu histórico de vida, perguntei ao pai se
não achava o dia-a-dia do filho pesado demais. Ele sorriu. “Meu filho
reclama por não ter tênis de marca. Eu, na idade dele, ainda não tinha
calçado sapato.” Frente às tribulações das gerações dos pais e avós,
realmente a vida da maioria das crianças e jovens chineses dos dias de
hoje é um melzinho na chupeta.
Se o jovem chinês não for naturalmente ambicioso, é provável que a
competição inerente ao sistema se encarregue de o tornar. Seus pais e
avós provavelmente também estarão lá para dar um empurrão. E, se tudo
isso falhar, é provável que a escola lhe coloque nos eixos.
Gustavo Ioschpe
Fui vítima da propaganda chinesa?
Na cidade de Taiyuan, estudante chinês carrega retrato do
líder Mao Zedong, durante a celebração do 90º aniversário da fundação do
Partido Comunista
(AFP)
O fluxo de informação é cuidadosamente controlado na China, todos os
canais de mídia são estatais, e o esforço para fazer com que eu (e
qualquer estrangeiro) saia com uma boa impressão do país é nítida e, às
vezes, cômica. Nas reuniões que tive nas universidades, o requinte era
tão grande e o cerimonial tão elaborado que me senti como se fosse parte
da comitiva de Nixon indo falar com Mao.
Quando o Brasil se redemocratizou eu tinha oito anos, e passei o resto
da minha vida em democracias ocidentais. Fazer uma viagem de reportagem
para um país hermético, ditatorial e onde ninguém fala inglês foi um
desafio e tanto.
Começou com o processo de emissão do visto, que demorou intermináveis
oito meses. A embaixada no Brasil só poderia emiti-lo se alguém da China
me convidasse para visitar o país. Poderia obter o convite de alguma
empresa brasileira com negócios lá, mas não adiantaria muito: como a
maioria das escolas e universidades é pública, precisaria da chancela do
governo. Mas a embaixada no Brasil não conseguia achar a pessoa certa
no Ministério da Educação (MOE), minhas tentativas de ligar de madrugada
(por conta do fuso de 11 horas) usando o telefone que aparecia no site
do MOE esbarravam no fato de nenhuma telefonista falar inglês e o
tradutor que me atenderia se recusou a ajudar, dizendo que a preparação
da viagem era comigo e ele só trabalharia quando eu chegasse.
Finalmente, depois de muitas idas e vindas, a embaixada achou o contato
certo, e depois de muitas cartas, e-mails e explicações, veio o
convite. Segundo a pessoa do MOE, foi a primeira vez que eles convidaram
um pesquisador para conhecer o sistema educacional chinês e escrever
para um veículo de comunicação de massa. Se isso é verdade ou só um
agrado eu não sei, mas o certo é que, depois de feito o convite, a
recepção foi extremamente atenciosa e tive a oportunidade de me
encontrar com muita gente importante e instituições prestigiosas da
educação local.
Na véspera do embarque, pequeno contratempo: o fotógrafo que me
acompanharia, um inglês radicado em Pequim há anos, descobre que o meu
tradutor – que costuma traduzir todas as autoridades brasileiras e
muitos dos jornalistas – é membro do PC. Para evitar mais essa camada de
controle sobre o fluxo de informação, trocamos por uma moça chinesa sem
filiação partidária. Minha maior preocupação ao chegar era, primeiro,
como saber se estavam me dizendo a verdade e, segundo, quão
representativa da realidade eram as escolas que estava visitando, já que
todas elas haviam sido escolhidas pelo governo.
Não tinha muitas ilusões de que os funcionários da burocracia me diriam
algo que não o estritamente permitido pelo Partido. Como resultado,
ouvi muitas mentiras, algumas descaradas. Era comum perguntar a um
diretor de escola se aquela era uma escola-chave e ouvir que não, para
então perguntar a pais e alunos e ouvir que sim. O caminho para se
chegar à verdade em uma democracia – a conversa com o político de
oposição, a leitura de um jornal crítico, o parecer de órgãos públicos
ou de ONGs que monitoram os governos – simplesmente não existe na China.
Então o jeito foi ir fazendo a mesma pergunta ao maior número de
pessoas e notando as inconsistências no caminho. Para aquilo a respeito
do qual só existe a versão oficial, a solução foi checar as experiências
de estrangeiros que haviam morado na China ou de reportagens da mídia
ocidental a respeito. No fim, creio ter conseguido esclarecer todos os
pontos importantes mencionados nesta matéria. As áreas nebulosas foram
excluídas do texto final.
Em relação à representatividade das escolas visitadas, confesso não ter
me preocupado muito no início. Ficaria no país por dez dias; tinha
certeza de que uma hora ou outra, falando com um pai de aluno na rua, no
hotel ou num táxi conseguiria, através da velha lábia e jeitinho
brasileiro, entrar em alguma escola. Ledo engano. Todas as tentativas
foram repelidas. Já no segundo dia senti que o caminho via aliciamento
seria difícil, então tentei o carteiraço. Fui a uma escola qualquer,
mostrei a carta-convite do MOE e pedi pra falar com o diretor. Não
passei nem do portão. O guarda me disse que a visita não estava
programada, que o diretor da escola havia falado com a autoridade
provincial e não havia recebido autorização. E tchau. O fotógrafo
sugeriu então que contratássemos um “fixer”, espécie de produtor
quebra-galho que acharia alguém para nos receber. No último dia em
Xangai, quando já estava quase jogando a toalha, a estratégia deu
resultado, e conseguimos visitar uma escola fora do programa oficial.
Para meu alívio, ela era bem semelhante a várias escolas que havia
visitado, o que sugere que as escolas ditas medianas que vimos eram
realmente medianas. A única diferença entre as escolas oficiais e esta é
que nela os professores eram menos sorridentes e afetuosos.
Chama a atenção, na China, a onipresença do PC. A maioria dos alunos
veste um lenço vermelho, sinal de que pertencem à organização chamada
“Jovens Pioneiros”, espécie de clube de escoteiros do PC. Os melhores
alunos são convidados para fazer parte do Partido quando crescem, assim
como muitos dos professores, e esse pertencimento é muito bom para o
guanxi (networking). Ninguém vai muito longe na China sem boas conexões
com o Partido. Nas próprias escolas, esse monitoramento é constante,
ainda que invisível. Além de atrair alunos e professores para suas
fileiras, toda escola tem um secretário-geral, cargo acima do diretor,
que é do Partido, cujo objetivo principal é se certificar que todos na
escola aderem à linha ideológica vigente. Esse profissional nunca é
visto.
O fluxo de informação é cuidadosamente controlado na China, todos os
canais de mídia são estatais, e o esforço para fazer com que eu (e
qualquer estrangeiro) saia com uma boa impressão do país é nítida e, às
vezes, cômica. Nas reuniões que tive nas universidades, o requinte era
tão grande e o cerimonial tão elaborado que me senti como se fosse parte
da comitiva de Nixon indo falar com Mao. Os encontros se deram em
enormes salas retangulares, em que eu e meu interlocutor sentávamos em
grandes poltronas ao fundo da sala, sempre acompanhados por ornamentados
bules e xícaras de chá e pratos de frutas. Aos nossos lados, em
fileiras de poltronas menores encostadas às paredes, ficavam nossos
respectivos assessores. Como a minha comitiva fosse diminuta – apenas
uma tradutora e um fotógrafo – as poltronas do “meu” lado acabavam
ocupadas freqüentemente por funcionários da universidade, já que a
entourage do meu interlocutor costumava ser extensa, especialmente para
presidentes ou vice-presidentes, com assessores, tradutor, fotógrafo,
repórter e, provavelmente, alguém do PC.
É lícito que o país tenha interesse em fazer propaganda de si mesmo.
Fui vítima dela? Impossível saber até que ponto as informações que
obtive foram manipuladas, pela própria opacidade do sistema. Mas me
sinto razoavelmente confortável para dizer que creio ter alcançado o
objetivo da viagem: conhecer o sistema educacional de Xangai e
esclarecer como conseguira a performance demonstrada no PISA. Se o
objetivo da matéria fosse conhecer o lado negro da educação chinesa,
certamente teria tido mais dificuldades.
E acho até que consegui um furo. Na volta de um almoço, com a guarda
mais baixa, um dos funcionários com quem conversei – cujo nome e
localização manterei sigilosos para proteger seu emprego e quem sabe seu
bem-estar – me admitiu que Xangai não foi a única província chinesa a
realizar o PISA 2009. O exame foi aplicado em outras províncias, mas os
resultados não foram comunicados à OCDE. Segundo ele, por problemas de
amostragem. Suspeito que por serem piores que Xangai, a ponto de tirar
da China o provável primeiro lugar no ranking. Mas a verdade, como em
tantos outros temas, ficará confinada ao punhado de big brothers que
administram o país.
Gustavo Ioschpe
O século 21 será da China?
Gustavo Ioschpe
O porto de Shenzhen, na China
(Daniel Berehulak/Getty Images)
A maior dificuldade que a China deverá enfrentar, porém, é
institucional e doméstica. Muitos sinólogos vêem grande risco de
convulsão interna no colapso do PC chinês e a transição para a
democracia. A teoria prevê que o próprio desenvolvimento capitalista
chinês gerará grupos que se ressentirão da mão pesada de um estado
ditatorial e com poder econômico para rivalizar com o partido. Será que o
mundo tolerará outro massacre da praça Tianamen, caso as tensões
cheguem à superfície? Essas preocupações são justificadas, mas creio que
também um pouco precoces e etnocêntricas.
A qualidade da educação chinesa tem impactos geopolíticos importantes.
Se antes do PISA podíamos pensar no país como “a fábrica do mundo”, uma
vasta área que abastece o mundo de isqueiros, guarda-chuvas e outras
quinquilharias e preços imbatíveis por conta de seu praticamente
infinito estoque de trabalho “escravo”, depois dele somos forçados a
mudar de idéia. A China está se capacitando para jogar o jogo onde ele
importa: nas áreas de produção de conhecimento e tecnologia, mirando os
bens e serviços que alavancam um país desenvolvido. Se há vinte anos a
China fazia brinquedos de plástico, hoje suas fábricas já produzem o
iPad, e a aposta do país é de que em mais dez produtos como esses sejam
também criados por chineses, e não californianos.
Se isso acontecer, como já aconteceu antes com o Japão e os Tigres
Asiáticos, as mudanças serão sísmicas: teremos não apenas uma nova
potência, mas provavelmente um novo poder hegemônico. O cálculo é
simples. Mantendo as atuais populações constantes, a China seria maior
que os EUA se tivesse uma renda per capita de 11 mil dólares – o que é o
nível de riqueza do Brasil. Se a China chegar ao PIB per capita da
Grécia, sua economia será maior do que as economias dos Estados Unidos e
da União Européia...somadas! A ultrapassagem dos Estados Unidos como
maior economia do mundo não deve demorar muito. Se a China crescer a 9%
ao ano e os Estados Unidos a 2%, a ultrapassagem acontece em 2024. Mesmo
se formos mais conservadores e projetarmos 7% para a China e 3% pros
EUA, a ultrapassagem ocorreria exatos dez anos depois.
Eu sei, você já ouviu isso antes. Quem tem mais idade ou lê História
sabe que o declínio americano já foi previsto em relação à Alemanha na
década de 30, à União Soviética na década de 50 e ao Japão na década de
80. Todos os concorrentes fizeram água. Por que haveria de ser diferente
com a China? Uma razão é o tamanho. Todos os outros países tinham
populações menores do que a americana, por isso precisavam ser mais
produtivos do que os EUA. A China é quatro vezes maior. Basta produzir
um quarto por habitante e se iguala.
A segunda é que, aparentemente, os chineses não se contentarão em
produzir um quarto, e estão, literalmente, fazendo o dever de casa para
que isso aconteça. Curiosamente, permanece na psique chinesa um pouco do
isolacionismo auto-suficiente dos tempos de império. Não creio que a
maior preocupação da China seja ser superior aos Estados Unidos. Tenho a
impressão de que eles acreditam que sua cultura, sua história e suas
tradições já são muito superiores à americana e européia. O movimento
chinês é para que o país realize suas potencialidades, que ficaram
soterradas por mais de cem anos de governos que oscilaram entre a
inépcia e a catástrofe. Como neto de imigrantes judeus que chegaram ao
Brasil miseráveis, fugindo de perseguições na Europa, foi fácil ver nos
chineses o mesmo espírito, a maciça liberação de energia empreendedora
de um povo oprimido por sua história. Os chineses de hoje são como
imigrantes. Foram exilados, em sua própria terra, de sua história, e
agora fazem o movimento de retorno.
Bobby Yip/Reuters
Trabalhadores aguardam o horário de entrada em frente a uma fábrica de produtos eletrônicos
Apesar do “espírito animal” afiado, das altas taxas de
poupança/investimento e da qualidade do seu capital humano, não há
garantias de que o crescimento chinês continuará robusto no longo prazo.
Primeiro pela própria dinâmica desse processo: é bem mais fácil ter
crescimento acelerado começando de terra arrasada e simplesmente jogando
dinheiro e gente trabalhando onde antes nem havia propriedade privada
do que gerar os ganhos de produtividade que são necessários para chegar
ao Primeiro Mundo. Segundo, pela ameaça externa: é provável que o mundo
ocidental em crise comece a ter menos tolerância a um país que
desvaloriza seu câmbio e subsidia suas empresas para ganhar o mercado
desses países. No limite, a ciência política mostra que a troca de
poderes hegemônicos costuma ser acompanhada por guerras – ainda que a
devastação causada por um conflito EUA x China seja um bom motivo para
deter os ânimos mais exaltados.
O desafio institucional - A maior dificuldade que a
China deverá enfrentar, porém, é institucional e doméstica. Muitos
sinólogos vêem grande risco de convulsão interna no colapso do PC chinês
e a transição para a democracia. A teoria prevê que o próprio
desenvolvimento capitalista chinês gerará grupos que se ressentirão da
mão pesada de um estado ditatorial e com poder econômico para rivalizar
com o partido. Será que o mundo tolerará outro massacre da praça
Tianamen, caso as tensões cheguem à superfície? Essas preocupações são
justificadas, mas creio que também um pouco precoces e etnocêntricas.
Etnocêntricas porque a democracia liberal é uma criação recente do
Ocidente. A China tem milênios de História e jamais foi democrática. Não
creio que a maioria dos chineses concordem com Fukuyama. Precoces
porque acho difícil que haja novo movimento maciço de oposição ao regime
enquanto o crescimento econômico continuar tão forte. É difícil de
explicar a energia que se sente em um país que está crescendo a 10% ao
ano: o caos de um trânsito em que tanto os motoristas quanto os
engenheiros de trânsito estão fazendo aquilo tudo pela primeira vez, o
otimismo desabrido dos jovens sobre suas possibilidades de futuro, mega
cidades surgindo do nada e virando a líderes industriais mundiais em
suas áreas, canteiros de obra por toda a parte. As rupturas políticas
costumam se dar em momentos de crise econômica, normalmente aguda. É
claro que a China não está imune a esses riscos, mas ela ainda tem muita
graxa pra queimar. Na grande crise de 2008-09, o crescimento seguiu
entre 9% e 10% ao ano. E agora o país começa a desenvolver um mercado
interno cada vez maior e mais rico, que protege o país das crises
externas.
Mão-de-obra - Tamanho importa: a população chinesa é
maior do que a soma das populações americana e européia somadas. Se
esses dois blocos se desenvolveram no pós-guerra basicamente atendendo
seu mercado interno e comercializando entre si, a China também pode
continuar crescendo com suas próprias pernas. E pense nisso: mesmo
depois desses trinta anos de crescimento acelerado e migração do campo
para as cidades, a China ainda tem 53% da população (equivalente a mais
de três vezes a população de todo o Brasil!) no campo. Nos Estados
Unidos, são 18% . É uma perspectiva assustadora: a China poderá ocupar
todos os nichos de mercado. Enquanto sua população mais qualificada vai
dominando as áreas de maior valor agregado, ainda há centenas de milhões
de pessoas que poderão continuar abastecendo as fábricas de mão-de-obra
muito barata.
O papel que a educação chinesa vai desempenhar nesse desenvolvimento
será decisivo. Seus líderes sabem que, por melhor que seja o seu sistema
educacional, ele é excessivamente baseado em esforço, memorização e
preparação para exames. Não é tão surpreendente, afinal, que os chineses
vão bem em testes como o PISA: quase desde a primeira infância seu
único objetivo no sistema educacional é ir bem em testes. Para se tornar
um país plenamente desenvolvido, os chineses terão de ir bem naquilo
que o gao kao não mede: criatividade, curiosidade, flexibilidade etc.
Conversei com alguns empresários estrangeiros com negócios na China, e
todos reclamam da falta de inventividade, iniciativa e capacidade de
liderança dos funcionários chineses. Eles são ótimos em seguir ordens,
mas não em pensar sobre elas, muito menos questiona-las. Será que o PC
vai conseguir insistir nessas reformas modernizantes, sabendo que o
trabalhador flexível e questionador também será o ser político com as
mesmas características?
Daniel Berehulak/Getty Images
Skyline de Shenzhen: modo de vida ocidental
Shenzhen talvez seja uma amostra do caminho a trilhar. A cidade,
vizinha a Hong Kong e local da primeira Zona Econômica Especial da
China, onde o capitalismo foi pioneiramente implantado, é também onde o
modo de vida ocidental fez mais avanços. Lá eu visitei a melhor high
school da cidade e uma das melhores de todo o país. O ensino era muito
bom, como nas melhores escolas de Xangai, mas o clima era decididamente
diferente. Não havia bandeira da China na sala – as paredes eram
decoradas com posters da NBA, do Barcelona e dos filmes da série
Crepúsculo. Os alunos não usavam uniforme, o clima da aula era bem mais
relaxado, com brincadeiras e risadas, e no intervalo entre um período e
outro o pessoal batia uma bola no fundo da sala. Me chamava a atenção,
nas escolas de Pequim e Xangai, que mesmo entrando com um fotógrafo e
tradutora a tiracolo e ficando muito perto dos alunos, ninguém se virava
para nos espiar ou perguntar de onde éramos. Na escola de Shenzhen os
alunos não só vieram bater papo como um deles me pediu e-mail e ficou em
contato. Vários alunos se vestiam com a roupa da moda e usavam
penteados estilosos. O diretor da escola criticou abertamente algumas
políticas do governo central.Os namoros são permitidos e nos shoppings
da cidade (que têm lojas Louis Vuitton e Prada do tamanho que as
Americanas ou C&A têm no Brasil) foi frequente ver adolescentes
andando de mãos dadas. Toda essa ocidentalização não vem sem custos:
mesmo na geração mais jovem já há gente reclamando da perda das
tradições chinesas, do enfraquecimento da identidade nacional.
Enfim, não será um caminho simples, e há muitas razões que podem fazer
com que esse período de apogeu da civilização chinesa seja seguido de
mais uma crise, fragmentação etc., como já ocorreu tantas vezes no
império. Mas, sinceramente, acredito que as possibilidades de sucesso
são muito maiores que as de fracasso. Já estou procurando uma escola de
mandarim pros meus filhos.
Gustavo Ioschpe
Contraste entre escola brasileira e uma chinesa é gritante
A primeira coisa que chama a atenção nas aulas é a disciplina. Para um ocidental, e ainda mais brasileiro, parece até exagerada
O EXEMPLO ASIÁTICO - A China mostra que a ideia de que não
pode haver educação de alto nível em cenário de pobreza é balela. No
último Pisa, a província chinesa de Xangai, que tem nível de renda per
capita muito parecido com o brasileiro, deu um show
(Philippe Lopez/AFP)
Capítulo 2 – A Escola
Fui para a China em outubro, já esperando ver escolas diferentes da
realidade brasileira, por tudo o que havia lido a respeito e pelo
próprio resultado do PISA. Em dez dias de viagem – dois dias em Pequim,
uma semana em Xangai e um dia e meio em Shenzhen, todas na região leste
(a mais desenvolvida) do país – visitei cinco escolas (mais duas escolas
técnicas e três universidades, sobre as quais escrevo nas páginas a
seguir). Mas mesmo todo o preparo não foi suficiente para, de início,
afastar a impressão de que tudo aquilo que eu estava vendo era uma
farsa, uma campanha de propaganda cuidadosamente elaborada pelo governo
chinês para iludir esse forasteiro. Foi só depois de conseguir visitar
escola sem o conhecimento ou consentimento do governo, de checar os
rankings das escolas visitadas e de falar com uma série de alunos e
ex-alunos chineses que me convenci de que o que estava vendo era uma boa
representação da realidade. Se não de toda a China – porque o Oeste do
país é profundamente mais atrasado que o leste, e em muitas províncias a
situação é de pobreza extrema – pelo menos naquilo que ocorre nas três
províncias que visitei. O contraste com uma escola brasileira é
gritante.
A primeira diferença é do espaço físico, especialmente da limpeza e do
cuidado. A maioria das escolas que visitei não tinha nada muito
sofisticado ou diferente, mas também não tinham nada fora do lugar ou
improvisado. Os pisos das escolas eram imaculadamente limpos, e em duas
ocasiões presenciei algo que nunca vi no Brasil, nem no tempo de
estudante e nem em visitas a escolas: o diretor ou vice-diretor que nos
acompanhava se agachando para recolher um pedaço de papel caído. Os
prédios são parecidos com os de muitas escolas brasileiras, ainda que um
pouco mais verticalizados. As escolas têm três ou quatro andares. São
escolas grandes, a maioria com mais de mil alunos. O sistema chinês é
dividido em três níveis: o “Elementary”, do 1º ao 6º ano; “Middle”, do
7º ao 9º, e o “High School”, de três anos. Em Xangai há uma leve
alteração: 5-4-3 ao invés de 6-3-3.
Não visitei nenhuma escola que tivesse os três níveis. A maioria tinha
apenas um nível, ou no máximo dois (middle e high). Em algumas escolas
cada série ocupava um andar. Essa organização do espaço é relevante.
Pois em cada andar há uma sala de professores, e essa divisão permite
que professores das mesmas séries estejam em contato frequente e tenham a
formação do seu grupo de estudos facilitado (veja o capítulo 3). A sala
de professores não tem nada a ver com esse espaço social e descontraído
dos colégios brasileiros: em Xangai, cada professor tem o seu cubículo,
em que guardam livros e materiais de sua disciplina e onde também há um
computador, onde preparam o material de aula (sempre da marca Lenovo,
empresa chinesa que adquiriu o negócio de PCs da IBM).
Ana Clara Pereira de Freitas, de 7 anos, filha de diplomatas
brasileiros: “Na escola que eu frequentava, no Rio de Janeiro, o
trabalho de casa era uma folhinha de papel e acabou."
O mais marcante, porém, são as salas de aula. O espaço físico é
parecido com as congêneres brasileiras, em termos de dimensão e formato.
A parede frontal também é ocupada por um quadro negro, depois vem a
mesa da professora e as carteiras e cadeiras dos alunos. Não há grandes
aparatos tecnológicos, decorações, apetrechos etc. Tudo bastante
simples. Só há três diferenças em relação às nossas salas de aula. A
primeira é que, tanto em Xangai quanto Pequim, há uma bandeira da China
sobre todo quadro-negro. A segunda é que há um data show, através do
qual os professores mostram material didático através de apresentações
de Power Point. O terceiro é que há vassoura e pá ao fundo de todas as
salas: cabe aos alunos a limpeza do seu ambiente. Há equipe de limpeza
nas escolas, mas elas só tomam conta das áreas comuns.
Acompanhei várias aulas de várias séries diferentes. Todas começam da
mesma maneira. A professora não se atrasa, nem os alunos. A professora,
de pé, então se inclina em direção à classe e diz: “bom dia, alunos”. Os
alunos então se levantam, se inclinam em direção à professora e, em
uníssono, respondem: “bom dia, professora”. Eles então se sentam e a
aula inicia.
Não há chamada nas aulas chinesas. Cada turma tem um professor que é
designado o seu “head teacher” (professor responsável, em tradução
livre), que deve ter um contato mais aprofundado com aquela turma,
conhecer seus alunos, suas famílias etc. Uma vez por dia, em horário
aleatório, o professor responsável passa pela turma e vê se tem alguém
faltando. Se há, ele deve ligar para seus pais para saber o que está
acontecendo. Caso todos estejam lá, o professor dá uma espiada e vai
embora. É um detalhe simples, mas pense em seu efeito. Se você tem oito
períodos por dia e gasta, digamos, três minutos fazendo chamada, quase
meia hora de aula do dia terá sido desperdiçada com esse ritual. Ajuda o
fato de que quase ninguém falta, claro. Nem alunos, e muito menos
professores.
No meu primeiro dia na China, em Pequim, conversava com uma diretora de
escola, Cui Minghua, 55. Perguntei a ela se o absenteísmo de
professores era um problema sério. Ela me olhou algo incrédula, conferiu
a pergunta com a tradutora. Pra simplificar, perguntei quantos
professores, em média, faltavam num determinado dia (a escola é muito
grande, com mais de 4 mil alunos em sete campi). “Nenhum”, ela me disse,
ainda sem entender muito onde eu estava querendo chegar. Então lhe
expliquei que em muitos lugares do Brasil o absenteísmo de professores
era um problema sério, que causava o cancelamento de aulas, a perda de
ritmo de ensino etc. A sra. Cui me pareceu um pouco incrédula, e me
contou a sua história para explicar o porquê de sua incompreensão. Ela
estava na carreira há 32 anos, sendo mais de 20 deles como professora.
Em todo esse tempo, tirou uma licença médica para realizar uma operação,
mas fora isso não teve falta nenhuma, em nenhum ano. Nessa escola,
chamada Fang Cao, fui ao campo de futebol para acompanhar a sessão de
exercícios físicos realizada pelos alunos com precisão militar.
Descobri que havia dois alunos brasileiros lá matriculados, que me
foram apresentados. Ana Clara Pereira de Freitas, carioca de 7 anos, e
Giovanni Iduino, seu conterrâneo de 10, são filhos de diplomatas e estão
na China há pouco mais de um ano. Nenhum deles mostrou alegria especial
por estudar em escola conduzida por diretora que não falta ao trabalho
há trinta anos. “No Rio, trabalho de casa era fazer uma folhinha de
papel e terminou. Aqui eu volto pra casa às 3 da tarde e preciso ficar
fazendo dever de casa até o jantar”, disse Ana. Giovanni confirma a
dureza. “Tô estudando aqui no 4º ano coisas que não estudaria no Brasil
nem no 6º. E num dia em que eu faltei à aula, a professora me perguntou
se achava que por ter faltado ia poder pular a matéria. Aí ela me mandou
mais trabalho de casa pra recuperar a ausência e me obrigou a ficar
trabalhando no horário do almoço”. Ambos querem voltar ao Brasil.
O sistema é realmente organizado para que o tempo seja utilizado de
forma efetiva. As aulas têm quarenta minutos de duração e dez minutos de
intervalo entre elas, ao contrário do sistema brasileiro, em que a
maioria das escolas adota aulas de 50 minutos, sem intervalos, exceto o
recreio. Como os professores precisam mudar de aula (na China também), é
óbvio que esse horário é inexequível. O professor brasileiro sempre vai
chegar na aula atrasado, e como o atraso é inevitável e sua duração é
incerta, o professor tem a liberdade de demorar o que achar necessário, e
os alunos podem fazer a balbúrdia que bem entenderem. Na escola
chinesa, os horários são cumpridos à risca, e os alunos sabem quando a
descontração começa e quando ela terá de terminar. Quando a professora
chega à aula, todos estão prontos para começar a lição.
A primeira coisa que chama a atenção nessas aulas é a disciplina. Para
um ocidental, e ainda mais brasileiro, parece até exagerada. A separação
entre as carteiras é milimétrica, e todas as mesas estão perfeitamente
alinhadas em relação à parede frontal. As cadeiras, por sua vez, também
estão alinhadas com as carteiras, e todos os alunos sentam de frente
para o quadro negro, costas eretas e pernas dentro de suas mesas. Sobre
estas, todos têm o mesmo material: estojo, caderno e, quando usado,
livro didático. Na maioria das classes que visitei havia entre 30 e 35
alunos, mas a média de Xangai é mais alta, de mais de 40 alunos no
middle school e 38 no high school . Sempre que o espaço permitia, cada
aluno sentava sozinho. Nas aulas menores ou mais numerosas, sentavam em
pares. No interior da China, sabe-se que chega a haver até 60 alunos por
sala, e aí há arranjos em que até se formam trios.
O que mais chama a atenção é que não há “turma do fundão”, conversas
paralelas ou problemas de disciplina. Não vi um único aluno pedindo para
ir ao banheiro nem, muito menos, celular tocando. Em quase todas as
aulas que presenciei, a professora tinha o total domínio da situação e
mantinha a atenção de todos os alunos, todo o tempo. Pra quem está
acostumado com salas de aula em que uma minoria costuma prestar atenção e
vários outros grupelhos paralelos se formam, cada qual falando sobre o
seu assunto, foi incrível ver uma sala assim. Também já cansei de ver,
no Brasil, professores que claramente não planejaram o seu tempo e não
têm a menor idéia de como preencherão aqueles cinquenta minutos, e
acabam ocupando esse tempo com chamada, avisos, repreensões, lições de
moral ou, na variação menos nociva, entupindo o quadro negro de texto
para que os alunos copiem ou pedindo a eles que leiam algum texto do
livro didático, hábitos que no Brasil são confundidos com dar aula. Nas
aulas chinesas, o valioso e escasso tempo de contato entre professores e
alunos é usado para ensinar. A organização da aula costuma ser assim: a
professora começa recapitulando onde pararam e o que aprenderam na aula
passada, rapidamente. Depois explica o conteúdo novo. Então faz alguns
exercícios, com o auxílio do data show, em que a idéia subjacente ao
conteúdo é explicitada e testada.
Sempre que possível, esses exercícios são feitos repetidamente, sob
prismas diferentes, pra ter certeza de que o aluno entendeu o princípio e
não apenas se tornou um resolvedor de problemas. E os exemplos usados
eram, várias vezes, ligados a temas de interesse dos alunos. Assim, por
exemplo, quando estive em uma aula de Matemática da 3ª série e a
professora queria ensinar a calcular o perímetro de uma superfície, ela
usou o exemplo de uma quadra de basquete, um dos esportes mais populares
do país. Mostrou que aquela quadra tinha 28 metros de largura por 15 de
altura, e então ensinou como o perímetro podia ser derivado: somando-se
todos os lados (28+15+28+15), somando a altura com a largura e
multiplicando por dois [(28+15) x 2] e duplicando cada lado para depois
somar [(28x2)+(15x2)]. Abre-se então uma sessão de perguntas e
respostas, que tem um ritual peculiar: quando a pergunta é feita, várias
mãos costumam ser erguidas. Os alunos têm ânsia de participar. E todos
levantam a mão exatamente da mesma maneira: o braço é levantado na
altura do ombro, paralelo à mesa de cada um; o cotovelo é flexionado em
um ângulo reto e a mão, espalmada em direção à parede lateral da sala.
Quando um aluno é selecionado pelo professor, ele ou ela se levanta
antes de responder e se senta logo depois. Depois desse momento, costuma
haver um tempo em que os alunos trabalham sozinhos, fazendo exercícios.
Perto do fim da aula, a professora corrige alguns desses problemas,
normalmente pegando os cadernos de alunos com dificuldades e os
mostrando a todos, mesmo que tenha erro. Se aquele aluno estiver errado,
alguém com a resposta certa será encontrado e explicará a resposta
certa para a turma. E, importante, a professora volta ao aluno que havia
dado a resposta errada e fica com ele para ter certeza de que entendeu
onde errou e como a resposta certa diferia da sua. O circuito é fechado.
Esse microcosmo mostra três dimensões importantes da educação chinesa:
disciplina, transparência e foco no aprendizado de todos os alunos.
A disciplina é visivelmente ensinada pela escola. Não é possível
imaginar que crianças e adolescentes tenham um impulso natural de se
levantar para responder uma pergunta ou que levantem o braço,
espontaneamente, na mesma altura. Uma série de programas da BBC chamado
Chinese Schools, disponível no youtube, mostra como o processo pode ser
cruel: um aluno é chamado à frente de seus colegas para se penitenciar e
desculpar por ter a borracha mais carcomida da sala. Ele se confessa
perdulário e promete cuidar melhor do seu material no futuro. O meliante
tem 7 anos de idade, e não segura o choro quando a aula termina. Essa
disciplina também é reflexo de uma educação inserida em um sistema
político repressivo, e claramente tem funções de controle social que vão
além dos interesses escolares. Mas é reconfortante notar que as
próprias autoridades educacionais chinesas, nos níveis mais altos, como o
Diretor Geral de Políticas Públicas do Ministério da Educação, Sun
Xiaobing, a quem entrevistei, sabem que essa disciplina excessiva acaba
criando profissionais que talvez possam ter sido bons operários do
sistema fabril dos séculos XIX e XX, mas que não suprem as demandas de
flexibilidade e criatividade que o século XXI demanda.
Há uma iniciativa coordenada, em todos os níveis de governo, para
relaxar esse controle e formar pessoas mais inquisitivas e criativas
para a Economia do Conhecimento. Como o PC chinês obterá esse triunfo
educacional-econômico sem perder a hegemonia política é assunto para o
artigo
O século 21 será da China? Por
outro lado, a constatação desses exageros não obscurece uma conclusão
inescapável: sem um mínimo de disciplina e ordem, em que o professor
possa se fazer ouvir, não é possível dar aula. E sem um sistema em que
todos os alunos são ativamente envolvidos pelo professor e em que os
grupos, conversas ou interesses paralelos são dissolvidos, não é
possível haver disciplina. Como no Brasil ainda se confunde ordem com
autoritarismo, a desordem também é confundida com liberalidade, e dessa
bagunça não sai aula que preste.
O caso do caderno dos maus alunos sendo exibido é um exemplo da
transparência radical que permeia o sistema. Os resultados mensais dos
alunos são exibidos para toda a comunidade escolar. Todo aluno sabe como
está o seu desempenho em relação aos seus colegas de turma e de escola.
Em um sistema muito competitivo e justo, essa transparência é quase
indispensável. Porque a educação chinesa é uma corrida constante, em que
apenas os melhores e mais esforçados alunos conseguem chegar às boas
universidades.
O sistema começa igualitarista: todas as crianças de um bairro vão para
a escola daquela área. Ao final do nível elementary, no 5º ano, há um
teste, e para aqueles alunos (ou seus pais) que querem ir para escolas
públicas melhores ou privadas no nível middle, o resultado desse teste é
importante para conseguir essa melhor colocação. Esse teste não causa
grande consternação à maioria dos alunos porque seu resultado não é
excludente: mesmo os maus alunos continuarão no sistema e irão para a
middle school mais próxima de sua região. Ao final da middle school, no
9º ano, vem o primeiro teste realmente importante, o jun kao. Feito em
todo o país, ele determina a high school que o aluno poderá frequentar.
Ao fazer o teste, o aluno marca suas 15 escolas preferidas, sendo que
pelo menos 14 precisam ser do seu distrito. A escola em que o aluno
poderá entrar será determinada pelo resultado dessa prova. Os melhores
alunos querem ir para as chamadas “key schools” (escolas-chave). Cada
distrito tem pelo menos uma escola-chave, mas também há as escolas-chave
da cidade, da província e, no topo da pirâmide, as de nível nacional.
Essas escolas recebem os melhores alunos, o governo coloca os melhores
professores e devota a elas mais recursos. Oficialmente, de uns anos pra
cá, não há mais escolas-chave e todas são tratadas igual, mas é um
pouco como o regime de castas na Índia: o governo pode as ter abolido,
mas todo mundo sabe quem é da casta dos brahmins e quem é dos
intocáveis. Apesar de supostamente não existirem mais nas políticas
públicos, alunos, pais e professores ainda usam o termo escola-chave e
sabem perfeitamente quais elas são.
Quem vai bem no jun kao pode ir para uma high school chave, o que
aumenta significativamente as chances de ir bem no gao kao e
consequentemente entrar em uma universidade top. Quem tem um desempenho
mediano segue sua vida acadêmica, sabendo que as portas das melhores
universidades dificilmente se abrirão. E, por último, quem tem
desempenho ruim no jun kao é obrigado a ir para uma escola
vocacional/técnica, que conduzirá ao mundo do trabalho ou, na melhor das
hipóteses, a uma faculdade técnica.
Como o número de alunos das escolas técnicas não é pequeno – na China
como um todo, 47% da matrícula no ensino médio está em escolas
técnicas/vocacionais – e, por outro lado, a competição para entrar na
universidade é muito acirrada, não dar ao aluno e seu pai a noção exata
de onde ele se encontra durante o decorrer de sua vida escolar e quais
são suas reais perspectivas seria quase criminoso. Ademais, ajuda o fato
de que a transparência é para todos: também os professores recebem
notas que são divulgadas entre seus colegas, e também cada escola é
ranqueada em seu distrito e tem sua posição divulgada publicamente. O
aluno não tem razão para se sentir injustiçado ou perseguido, portanto: o
sistema é o mesmo para todos.
O que contrabalança toda essa cobrança e rigor é o inegável compromisso
de todos os educadores chineses – do professor primário da escola do
interior ao ministro – com o efetivo aprendizado de todos os alunos e
com o seu bem-estar em geral. A China ainda ostenta um forte sentimento
de patriotismo e de comunidade. Não foram poucos os alunos com quem
conversei que disseram ter vontade de ficar no país para ajudar a
construir um projeto coletivo de futuro. Um mestrando me disse
explicitamente que recusaria ofertas salariais mais altas de empresas
estrangeiras, para poder ficar no país. O sentimento de lealdade
familiar e, por extensão, à coletividade mais ampla está arraigado na
cultura chinesa de uma maneira que é difícil para um ocidental
compreender. É paradoxal que um país de 1,3 bilhão de habitantes se
comporte de modo algo provinciano, como uma grande família, mas é
verdade. E em nenhuma área esse desvelo é mais evidente do que na
educação, que representa um enorme esforço dos chineses adultos para com
a próxima geração. Hejio Jiang, 14 anos, é aluna da escola de Xangai
que visitamos em segredo.
Ela estuda muito e está um pouco nervosa com o jun kao. Me contou um
sonho recente: que começou a chover doces em sua sala de aula. Ela é
aluna top 5 da sua aula e top 15 da sua série. Ano passado, suas notas
subitamente caíram, e ela ficou em 36º lugar na série. Sua professora a
chamou para uma conversa particular. Não para cobrar, reclamar ou dar
bronca, mas para saber o que estava acontecendo. Quis saber como andavam
as coisas em casa, se havia brigas, como andava o trabalho do pai etc.
Quis entender o que estava acontecendo e se colocou à disposição para
ajudar. Notando que não havia nenhum problema familiar, entrou em
contato com os pais e, juntos, trabalharam para que Jiang voltasse a ser
uma aluna top, o que efetivamente aconteceu. Os cuidados também se
manifestam nas áreas mais simples, como o físico. Nessa escola, me
chamou a atenção que 16 dos 25 alunos de uma turma que visitei usavam
óculos. Perguntei ao diretor que nos acompanhava se a escola fazia
testes visuais. Ele me explicou que não apenas aquela escola, e não
apenas testes de visão: em todas as escolas da China todos os alunos
passam por um exame físico básico a cada ano. Médicos e enfermeiros vêm à
escola e passam um dia examinando os alunos, verificando visão, audição
e saúde geral. Confirmei a informação nas outras escolas em que
visitei.
Na mesma escola, quando estávamos entrando em uma aula de artes da 6ª
série, uma aluna estava chorando e com dificuldade de caminhar por conta
de uma queda que havia machucado seu joelho. Imediatamente uma
professora veio ficar com ela, confortou-a, pegou-a pelo braço e a
ajudou a caminhar para longe dali. Uns quinze minutos depois, a mesma
professora voltou com a aluna, já recuperada, e a entregou à sua sala de
aula. Me veio à mente uma escola que visitei em Goiânia, em que os
alunos faziam um verdadeiro vale-tudo de pancadaria no horário de
recreio. Um deles veio, com o pé ensangüentado, na direção da
coordenadora pedagógica que conversava comigo. Ele pedia atendimento,
mas ela não interrompeu o seu discurso sobre como eles estavam
comprometidos com a formação do cidadão integral. Resignado com a
desatenção, o aluno cuspiu em seu próprio pé para tirar o sangue e
voltou para sua aula. Há milhares de professores brasileiros
comprometidos com seus alunos e apaixonados por eles, que se importam
profundamente com seu futuro. Mas há outros tantos que adotam a postura
cínica manifestada pela diretora de escola interpretada por Judi Dench
no filme “Notas sobre um Escândalo” , que dá a seguinte dica à
professora novata: “A gente aprende que educar é controlar as massas.
Nós somos uma ramificação do serviço de assistência social. Console-se
com os bons alunos. O resto é rezar e controlar o rebanho.”
Na China, não vi esse cinismo – nem em minha visita, nem nos programas
de TV ou livros de relatos feitos por estrangeiros. O sistema realmente
se importa com cada aluno. Essa talvez seja, em síntese, a razão do
sucesso da educação chinesa: ela combina a competitividade dos
americanos com o cuidado e amparo dos melhores sistemas europeus. A
competição, sozinha, tem gerado comportamentos antiéticos e a seleção e
priorização dentre o alunado. E os sistemas sem nenhuma competição e
cobrança, em que tudo é oferecido e pouco é exigido, acabam se tornando
complacentes. O Brasil não faz nenhum dos dois – bane a competição por
inclinação ideológica, e o fracasso acadêmico dos alunos mostra que a
preocupação com sua formação é conversa mole. A China está conseguindo
unir as duas vertentes. Pode cobrar e exigir muito do aluno porque ele
sabe que é pro seu bem, que o sistema visa os seus interesses. E também
porque o sistema é justo. Não apenas cobra de todos os alunos, mas cobra
ainda mais de seus professores.
Capítulo 3 – Professores
Wei Du, professora de engenharia química de Tsinghua
A excelência dos professores chineses é 1% inspiração e 99%
transpiração. Os próprios oficiais da China admitem que a formação de
seus professores não tem nada de especial. É o que acontece depois que o
professor sai da faculdade que o transforma, e a metodologia para isso é
basicamente a mesma aplicada aos alunos: muito trabalho, monitoramento
constante, competição misturada com apoio e um sentimento de
coletividade.
Não há nada de especial com a carreira de professor em Xangai. O
salário não é exatamente atraente. Nos três primeiros anos de carreira,
fica entre 30 e 40 mil yuans por ano, ou algo entre 400 e 500 dólares
por mês , o que é perto da metade da renda média do habitante da região.
Nessa fase, muitos professores recorrem a outros trabalhos para
complementar a renda. Os melhores podem até dobra-la dando aulas
particulares ou em escolas de reforço. Os professores de nível médio
recebem praticamente o dobro, 72 mil yuan/ano. E os professores top
recebem 90 mil. Todos esses profissionais ainda podem receber
bonificações, decididas por suas escolas, que não chegam a 40% do valor
do salário. Grosso modo, o salário do professor vai de 0,5 a 1,5 vezes o
PIB per capita de sua região. No Brasil, o salário médio é de 1,4 vezes
o PIB per capita nacional. Lá, assim como cá, ninguém se torna
professor pelo salário.
Conversei com muitos professores e também com alunos de graduação e
mestrado na área de magistério, e as razões apontadas por elas (também
na China a maioria dos docentes é do sexo feminino) são parecidas com
aquelas mencionadas no Brasil: gostam de lidar com crianças, a carreira é
estável, têm professores na família e/ou cresceram admirando a
profissão. Os alunos mais ambiciosos não querem ser professores, e
quando perguntei a um aluno do curso de magistério, Xu Xiao, 24 anos, o
que seu pai achara de sua decisão de carreira, sua resposta foi seca:
“sem comentários”.
Os cursos de formação de professores não são muito especiais ou
inovadores. Duram quatro anos e sua carga horária é dividida assim:
metade do tempo é devotado ao ensino da matéria que o futuro professor
ensinará (professor de Matemática estuda Matemática etc.), 20% a 25% do
tempo é gasto com matérias gerais (Inglês, Chinês, Política, TI), 20% a
25% com cursos gerais de educação (Pedagogia, Psicologia e didática para
ensinar a matéria específica que o futuro professor ensinará) e o
restante com disciplinas opcionais. Há três diferenças principais entre a
formação dos professores brasileiros e chineses. A primeira é que, na
China, a prática de sala de aula se faz muito mais presente do que no
Brasil. Ela começa já no segundo ano do curso, quando o futuro professor
acompanha aulas em escolas regulares duas vezes por semana durante oito
semanas. Depois, o aluno devota o penúltimo semestre do curso a estágio
em uma escola, e no último semestre do curso ele precisa refletir sobre
essa experiência e escrever a respeito. No Brasil, apesar desse período
de estágio e reflexão estar em lei, ele não costuma ser cumprido com
muita seriedade, como apontou pesquisa recente da Fundação Victor
Civita. A segunda é que as escolas chinesas são mais pragmáticas e
diversificadas na escolha de seus pensadores pedagógicos de referência.
Há um esforço constante de se abrir ao mundo e ver o que funciona, e
pinçar de cada lugar as melhores idéias. O Brasil ainda é
primordialmente construtivista, e Piaget tem influência desproporcional
em nossos cursos.
Finalmente, diferimos no papel da ideologia. A propaganda ideológica é
explícita na China, e a louvação do país, suas lideranças e seu sistema
transparece abertamente nas aulas de política a que os futuros
professores são expostos. Mas ela é restrita a esse momento e não
contamina as demais áreas, assim como o fato de a China ser oficialmente
República Popular da China e ser comandada há décadas por um único
partido, o Comunista, não faz com que ninguém se iluda quanto ao fato de
o país ser um dos mais capitalistas e menos republicanos do mundo. No
Brasil, a ideologia contamina todas as áreas do saber ministrado nesses
cursos, que não pode ser “neutro”. E, ao contrário dos companheiros
chineses, os futuros professores brasileiros se convencem dessa pregação
e a propalam por livre e espontânea vontade aos seus alunos. As
universidades chinesas entregam professores competentes ao mercado
escolar; o que os torna excepcionais é o que vem a seguir.
Antes de poder dar aulas, o futuro professor precisa passar por um
processo de certificação, através de prova. Isso é assim para todo o
país. Em Xangai, o funil continua. O candidato deverá fazer um teste de
teoria educacional, escrito, que tem entre 150 e 200 perguntas. Se
passar nesse teste, vai para uma entrevista com as autoridades da
província. Aliás, não é bem uma entrevista, mas uma prova de fogo. Os
entrevistadores são funcionários da secretaria da Educação local e
escolhem um assunto, dentro da disciplina na qual o candidato se formou,
e pedem para que ele prepare uma aula. O candidato tem 50 minutos para
prepará-la. Passando por essa fase, ele tem então exame físico e
psicológico. Ao final desse processo, ele então está liberado para
negociar com uma escola que o contrate.
A maioria dos contratos para novos professores são de apenas um ano.
Durante esse ano, o novo professor será acompanhado de perto. Ele
precisa submeter ao diretor de sua escola o plano de aula de todas as
lições, ou ele será acompanhado em todas as aulas por um professor mais
velho ou alguém da direção. Em algumas escolas, ambas as coisas. A
liberdade ao professor é uma conquista, não um direito: ela só vem
depois de sua competência ser comprovada em sala de aula. Depois desse
ano probatório, o professor é então efetivado, normalmente em contratos
de três anos que, se renovados, podem chegar a cinco anos. Não há
contratos vitalícios ou estabilidade no emprego, ainda que, na prática,
muito poucos professores veteranos sejam demitidos.
Parece bastante trabalho, mas o grosso do esforço vem quando o
professor é efetivado. Aí ele passa a integrar um “grupo de estudos dos
professores”, que é sem dúvida a inovação mais importante da educação
chinesa, que está presente em todas as escolas do país, em todos os
níveis, até mesmo na educação técnica. Cada professor faz parte de três
grupos de estudo. Um com os colegas que ensinam a mesma matéria para a
mesma série. Esse se encontra uma vez por semana para preparar as aulas
juntos. O segundo grupo é formado pelos colegas de disciplina de todas
as séries da mesma escola. Esse se encontra duas vezes ao mês. O
terceiro é formado pelos professores da mesma disciplina e série do seu
distrito (Xangai tem 18 distritos, cada um com população média de 1
milhão de pessoas). Esse grupo também se encontra duas vezes por mês.
Nesses dois últimos grupos, o objetivo é compartilhar práticas de
ensino de sucesso. As reuniões normalmente têm o formato de aulas
abertas, “master class”: os melhores professores da escola (e, no
terceiro grupo, do distrito) dão uma aula a todos os seus colegas, como
se esses fossem estudantes. Os professores na platéia assistem à aula e
depois se dividem em grupos para comenta-la e dar feedback ao
professor-mestre.
Somando os três grupos, é um regime exigente e que demanda muito tempo:
são duas reuniões por semana, toda semana. A maioria desses encontros
leva entre duas e três horas. No primeiro grupo, congregando os
professores da mesma série, há um professor-líder, normalmente mais
experiente. Esses grupos cumprem algumas funções importantíssimas.
A primeira é de espalhar as boas práticas e fazer com que os
professores de uma região conheçam qualquer boa idéia ou inovação
praticada por um de seus colegas. Isso faz com que a qualidade da aula
ministrada em cada turma seja, efetivamente, a melhor aula disponível em
toda a região. E as melhores aulas de cada região são vistas pelos
representantes de toda a província, que se encarregarão de espalha-la
para todos os outros distritos, através de material didático, artigos ou
seminários. Essa é uma diferença radical em relação à educação
brasileira. Apesar de nossas escolas também serem, nominalmente, parte
de uma rede, em realidade cada unidade é um universo paralelo, que
funciona de acordo com as vontades de seus diretores e professores. Na
mesma Goiânia da escola da pancadaria e aluno ensangüentado, que tinha
IDEB 1,2 (em uma escala de 0 a 10 que mede a qualidade da escola), havia
uma escola com IDEB 7,1, com aulas efervescentes, alunos interessados e
professores e diretora comprometidos. Essas diferenças são da vida, mas
o mais incrível é o seguinte: as duas escolas estão separadas por não
mais de dez minutos, atendem públicos de perfis semelhantes, fazem parte
da mesma rede (a municipal) e seus profissionais ganham o mesmo
salário. Sabe quantas vezes o pessoal de uma escola tinha falado com a
outra? Zero. Nunca. Uma escola de nível subsaariano é vizinha de uma
escola de nível europeu e não se beneficia em nada de todos os anos de
aprendizados, esforços e vitórias da escola boa. É vergonhoso. Na China,
elas estariam em contato constante, e sua diferença de qualidade
certamente seria menor.
A segunda função importante dos grupos de estudo é de controle. De uma
forma suave e furtiva, todo professor chinês é constantemente monitorado
por seus colegas. Digamos que um professor de Física, por exemplo, não
domine bem a segunda lei de Newton e deva ensina-la a seus alunos. O que
acontece? No Brasil, depende da boa vontade do professor. Se for uma
pessoa comprometida, vai voltar aos livros para estudar, vai fazer um
esforço para procurar outro professor e se aconselhar. Se, pelo
contrário, for pessoa menos séria, o professor dará uma má aula sobre o
assunto, ou nem o ensinará. O aluno ficará com a lacuna naquele
conhecimento pelo resto da vida, ninguém ficará sabendo da deficiência
do professor e estamos conversados. Como o professor tem estabilidade no
emprego e a maioria dos seres humanos prefere trabalhar menos e se
divertir mais, o arranjo institucional estimula a preguiça e o
descompromisso. Na China, o que aconteceria com esse mesmo professor? Se
ele decidisse dar um “dane-se” a Newton e não viesse preparado para a
reunião de seu grupo na semana em que o assunto seria ensinado,
provavelmente sofreria um tremendo embaraço frente a seus colegas. Em
último caso, o assunto poderia chegar ao diretor da escola, que poderia
rescindir o contrato com o professor ou, dependendo das suas cláusulas,
simplesmente não renova-lo. De forma que ou o professor se esforça e
aprende ou, no limite, será desligado. Quem sofre com a
irresponsabilidade docente é o docente, não o aluno.
A terceira função dos grupos é dar amparo e acolhimento aos
professores. Tanto em termos pedagógicos quanto emocionais. Digamos que
esse professor que desconhece a segunda lei de Newton seja bem
intencionado, volte a estudar o assunto mas, mesmo assim, continue sem
muita firmeza em relação ao tema. Ele sabe que será ajudado por pessoas
que estão inseridas na mesma realidade que ele, e é provável que pelo
menos algum membro do grupo domine melhor o assunto e possa dar dicas de
como ensina-lo. Como o grupo se reúne toda semana, ele vai resolver o
problema antes que ele aconteça. Talvez naquela quinzena verá esse
assunto debatido e ensinado pelo melhor professor do seu distrito,
fazendo com que sua aula deixe de ser mediana e passe a ser muito boa. O
professor não precisa recorrer a amigos ou conhecidos ou vasculhar na
internet por alguém que ele nunca viu na vida. O exercício da docência,
na China, é efetivamente uma tarefa compartilhada, que os professores
constroem juntos, um se aproveitando das virtudes do outro, até que todo
o sistema convirja para as melhores práticas de cada assunto.
Isso é muito diferente da dinâmica no Brasil e, aliás, na maioria dos
países ocidentais, em que cada professor opera por conta própria,
sente-se isolado, não tem a quem recorrer em caso de problemas e
continuará dando a mesma aula, ano após ano, sem saber que talvez o
colega de classe dá uma aula excelente sobre o mesmo assunto.
Suspeito que esse pertencimento e essa vida em grupo, apesar da carga
de trabalho adicional que gera, seja a responsável também pela melhor
saúde emocional dos professores chineses. No Brasil e outros países
ocidentais, são freqüentes os afastamentos de professores por motivo de
depressão, estafa, problemas de voz, “síndrome de burnout”. Esgotamento,
enfim. Na China, quando perguntei para professores e diretores sobre o
assunto, era como se perguntasse sobre o problema de tsunamis para quem
mora a mil quilômetros da costa: eles sabem que existe, já ouviram
falar, mas não é algo que lhes afete ou preocupe. Quando o professor
chinês tem problemas, sua primeira linha de defesa não é o consultório
psiquiátrico, mas a sala dos professores e, depois, o diretor de sua
escola.
Outra característica importante do sistema de Xangai diz respeito à
carreira do professor. No Brasil, todas as discussões sobre plano de
carreira são sobre como tornar a carreira mais atraente e como pagar
melhor os professores. A discussão costuma ficar entre os sindicatos,
que querem salário mais alto e sem distinção de desempenho docente (todo
mundo ganha o mesmo), e alguns políticos reformistas, que querem basear
os aumentos salariais ou em critérios que a pesquisa mostra serem
irrelevantes para o aprendizado dos alunos – como tempo de profissão ou a
realização de cursos de pós-graduação – ou naqueles sobre o qual ainda
há dissenso na pesquisa, que é difícil de quantificar e medir e para o
qual há intensa oposição na categoria, que são as medidas de desempenho
do professor, usualmente medidas pelo aprendizado do aluno em testes.
Xangai encontrou uma maneira mais engenhosa. Dividiu a carreira em
apenas três níveis salariais (baixo, médio e top), conforme o mencionado
anteriormente, mas fez com que a migração entre os níveis não fosse
automática ou estritamente dependente de resultados. Para passar de um
nível para outro, o professor é que tem de se candidatar. E para receber
a promoção, ele passa por um processo que visa garantir que não apenas
faz por merecer o aumento hoje como se compromete a continuar melhorando
no futuro. Da seguinte forma: olhando para o presente, o professor
passa por entrevistas, sua atividade em aula é observada e a pesquisa
que tenha publicado é levada em conta. (Essa pesquisa é composta
basicamente de artigos em que o professor reflete sobre a sua prática e
compartilha ensinamentos em revistas para o público de educadores na
China.
E olhando para o futuro, a promoção vem com uma contrapartida: a carga
horária de treinamento à qual o professor se compromete aumenta
bastante. Para um professor passar do nível intermediário ao nível
superior, por exemplo, sua carga de treinamentos passará de 240 horas
para 540, espalhadas em um período de cinco anos. De forma que uma
promoção não é só um reconhecimento pelo trabalho bem feito, mas também
uma exigência de que esse trabalho aumente no futuro. E como as
promoções são opcionais – o processo precisa começar pelo professor, não
pela Secretaria – não há animosidade entre colegas ou negociações
coletivas. Se beneficia quem quer. Os níveis de cada professor são
públicos para os seus colegas, encorajando uma competição sadia.
Outra competição sadia entre professores é pelos prêmios de qualidade
no ensino. Todo os anos a secretaria de Educação de Xangai cria
concursos em algumas disciplinas. Para participar, o professor precisa
cumprir três requisitos: dar uma aula aberta à comunidade, fazer prova
escrita e preparar um plano de aulas. Os vencedores de cada escola são
então classificados para concorrer no nível distrital, os vencedores do
nível distrital concorrem então no nível de toda a província. Os
vencedores da província de Xangai tem seus nomes e feitos amplamente
divulgados pela mídia local e se qualificam para concorrer em premiação
nacional. Qualquer vitória repercute sobre a bonificação do professor,
de maneira proporcional ao tamanho da área da conquista. É uma maneira
engenhosa de fazer com que mesmo os melhores professores continuem
querendo se aperfeiçoar, motivando-os com dinheiro e reconhecimento
público. Em muitas das escolas que visitei, os prêmios das escolas e de
seus professores estavam expostos com destaque, logo no saguão da
entrada. É uma fonte de orgulho para alunos, pais e professores.
Até agora, falamos das escolas, alunos e professores, tudo aquilo que é
visível a olho nu. O extraordinário esforço feito por todos esses
atores remete a duas perguntas cujas respostas não são visíveis.
Primeira: por que esse sistema foi brotar justo na China, uma ditadura
comunista que até pouco tempo atrás só produzia produtos de baixa
qualidade feitos em regime de semi-escravidão onde, portanto, não havia
incentivo econômico e nem político para o florescimento do melhor
sistema educacional do mundo? Segunda: além do talento e determinação de
professores e alunos nas escolas, quais são as idéias e intenções dos
mandarins que estão por trás desse esforço, e quão relevante é o seu
papel? São os assuntos dos dois últimos capítulos.