É pior que parece- Crack-
A
operação policial organizada para desmantelar a Cracolândia de São
Paulo tornou visível um flagelo que hoje assola mais de 90% das cidades
brasileiras
Giuliana Bergamo e Kalleo Coura rev Veja.
Durou
quase vinte anos. No início dos anos 90, traficantes e usuários de
crack de São Paulo começaram a se concentrar nas áreas do centro da
cidade para, em grupos cada vez mais numerosos, proteger-se da polícia e
ter acesso mais fácil à droga. Com o passar do tempo, foram ocupando as
calçadas e as ruas, de maneira que, em algumas, os carros já não podiam
circular: desviavam sua rota daquilo que ficou conhecido como
Cracolândia, o território particular, escuro e indevassável do crack. Há
duas semanas, a Polícia Militar do estado deflagrou uma operação para
dispersar os viciados à força. A investida foi classificada de
“precipitada” (os serviços de abrigo e tratamento para dependentes não
estariam prontos para receber os usuários), “desastrosa” (ela teria
simplesmente espalhado pela cidade os dependentes que antes se agrupavam
em uma única região) e “errática” (na semana passada, os viciados já
haviam voltado à Cracolândia sem que a polícia os molestasse). Se teve
erros, o trabalho registrou ao menos dois acertos: o primeiro foi
quebrar o domínio territorial dos traficantes, sem o que nenhum combate a
drogas é bem-sucedido. O segundo foi que, ao produzir cenas
estarrecedoras – como a de centenas de homens, mulheres e crianças
vagando sem rumo pela cidade, olhos esgazeados e roupas em farrapos,
depois de ser desalojados das ruas que ocupavam –, despertou a atenção
do país para um problema que está longe de se limitar à capital
paulista.
Um
levantamento realizado no ano passado pela Confederação Nacional dos
Municípios em 4430 das 5565 cidades brasileiras revelou que o crack é
consumido em 91% delas. Cortadores de cana do interior de São Paulo
adotaram a droga como “energético”. No Vale do Jequitinhonha e no norte
de Minas Gerais, ela avança em ritmo de epidemia. Em Brasilândia de
Minas, por exemplo, com 14000 habitantes, a prefeitura já mapeou oito
minicracolândias. Em Teresina, a capital do Piauí, 8000 viciados
perambulam pelas ruas. Numa aldeia indígena de Dourados, em Mato Grosso
do Sul, 10% das 2000 famílias têm ao menos um viciado em casa. A
disseminação do crack não poupou nem a remota Amazônia, onde 86% dos
municípios registram o consumo da droga.
Tamanha
capacidade de penetração deve-se ao baixo preço do crack (5 reais a
pedra) e à forma com que ele atua no organismo. Fumada, a pedra
desprende um vapor com alta concentração de cloridrato de cocaína, o
princípio ativo da droga. Essa substância libera no cérebro a dopamina,
neurotransmissor responsável pela sensação de prazer. Com o crack, a
descarga de dopamina no cérebro é duas vezes mais potente do que a
causada pela cocaína aspirada. “Ele provoca tamanho caos na química
cerebral que, depois de algumas semanas, o usuário está viciado. Ele
busca a sensação que experimentou na primeira vez em que utilizou a
droga e que nunca mais se repete”, diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira,
da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Quase todos os
dependentes acabam desenvolvendo transtornos psiquiátricos, como
depressão e ansiedade, e têm os sistemas respiratório e cardiovascular
comprometidos. Em cinco anos, um terço deles morre.
O
crack surgiu na década de 80, nas Bahamas, um dos principais
entrepostos do tráfico de cocaína na rota rumo à América do Norte. Logo
se espalhou pela periferia de cidades como Los Angeles, San Diego e
Houston. Ao contrário do Brasil, onde os viciados sempre acendem seu
cachimbo diante de policiais passivos, nos Estados Unidos as ruas nunca
foram território livre para o consumo de drogas. Assim, para fumar, os
usuários abrigavam-se em casas abandonadas. Transformadas em antros do
vício, elas ficaram conhecidas como crack houses. Em 1988, 2,5 milhões
de americanos já tinham consumido crack – e algumas das inevitáveis
consequências disso apareciam na forma de estatísticas criminais. Um
levantamento mostrou que, na cidade de Nova York, um terço dos
homicídios cometidos naquele ano tinha relação com a droga.
Os
Estados Unidos conseguiram debelar a epidemia de duas formas. A
primeira consistiu em desmontar o esquema dos traficantes por meio do
desmantelamento das crack houses. Agentes da polícia se infiltravam
nesses locais, colhiam imagens de traficantes para ser usadas como
provas nos inquéritos e terminavam invadindo os imóveis, que, em
seguida, eram desapropriados pelo poder público.
A
segunda estratégia, surgida em 1989 na Flórida e copiada por todos os
estados americanos, foi a criação das drug courts, tribunais
especializados em delitos relacionados ao uso de drogas. Por esse
sistema, viciados flagrados com pequena quantidade de entorpecentes (até
28 gramas, no caso de crack ou cocaína) e que não tenham cometido
crimes graves, como homicídio, podem escolher entre ser julgados da
forma convencional ou ingressar num programa de tratamento oferecido
pelo governo. Quem completa um ano de abstinência (de álcool, inclusive)
tem a ficha criminal cancelada. Hoje, nove em cada dez americanos que
optam pelo tratamento não cometem novos crimes ao longo do ano seguinte e
70% abandonam a criminalidade de vez. “O programa não só ajudou a
recuperar os viciados como significou um duro golpe para os traficantes,
que viram a demanda por sua mercadoria diminuir”, diz David Kahn,
ex-promotor de Justiça da Flórida. O tratamento médico inclui desde
diversos tipos de terapia, como a cognitivo-comportamental e a de grupo,
até internação.
Os
Estados Unidos não varreram o crack do seu território, mas conseguiram
diminuir drasticamente o seu consumo. No ano passado, 83000 americanos
passaram a usar a droga. Em 2002, foram 337000. No Brasil, a luta mal
começou.
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